A VIRGEM GRÁVIDA
A VIRGEM GRÁVIDA
Buda, Jesus, Dionísio e outros tantos avatares são filhos de virgens grávidas. O Cristianismo, quando se encalacrou no moralismo, considerou o termo “virgem” como “casta”, até mesmo “assexuada”, demonizando, assim, o corpo e subtraindo a independência da mulher, pois, no original aramaico, “virgem” tinha o sentido de “donzela independente”, “mulher livre”, verdadeira condição de afronta ao patriarcado.
Nesse contexto, em civilizações diversas, virgem era a mulher que não havia contraído matrimônio, portanto, senhora de si mesma, geralmente detentora de saberes diversos, inclusive espirituais. Naturalmente tais mulheres sempre assombraram a masculinidade insegura e repressora (haja vista a condenação das mulheres sábias, as bruxas, em vários momentos da história, sempre sob a acusação de estarem ligadas a forças do mal, quando, na verdade, ajudavam o mundo a lidar com suas sombras, em busca da luz, conectadas ao Feminino Superior, à energia lunar e seus ciclos).
Muitas dessas virgens deram à luz heróis, mestres, semideuses, históricos ou míticos, não importa. Foram (e são) virgens grávidas. Não no sentido literal, pois o óvulo não se fecunda a si mesmo e ninguém nasce pelo umbigo ou pela boca da mãe. São mulheres que integram o masculino, não o excluem. Não são senhoras dos homens, mas de si mesmas. Negam o patriarcalismo, não a natureza do masculino. Ou não seriam virgens, no sentido primordial da palavra. Nem grávidas.
Também eu conheci uma virgem grávida. Trabalhava numa feira de livros, em São Paulo, simpatizou com um rapaz e lhe deu de brinde um breviário em latim quando ele comprou 04 volumes da “Suma Teológica”, numa edição bilíngue latim-francês. Saíram de um instituto para um café a Paulista, desceram até o Bixiga e se enfronharam numa escadaria, ela de camiseta azul marinho, o sutiã com o fecho fácil de se abrir. Uma noite o rapaz saiu do Butantã e cruzou a cidade de ônibus, pautado pelas referências da casa da menina. Desceu perto de uma igreja, andou alguns quarteirões e perguntou por ela, descrevendo-a (era do interior e sabia ser possível chegar a qualquer lugar simplesmente fazendo as perguntas certas). Achou a casa, bateu à porta, ela atendeu, mexendo num colarzinho no pescoço enquanto o repreendia, pois sabia que ela namorava, não escondera, se encantara com ele, mas tinha namorado. Dois dias depois telefonou para o rapaz, marcaram de ir a um cinema na Lapa de Baixo, o filme era alguma edição de Robocop, ela tirou os óculos dele para poder beijar melhor, o rapaz se lembra apenas de ouvir tiros na tela, não via nada. Quatro anos depois se casaram.
Apelido: Lili. O nome podia ser Lilian, Elisabete, Elizabeth, Lindaura, Lilith. Não sei. Eu disse que a conheci, mas de vista, não como o rapaz que se casou com ela (quem dera!) ou como amigo, irmão, confidente. De vista e de observação. E também de algumas histórias que eu simplesmente soube mesmo sem terem sido contadas. Lili distribuía preservativos para as meninas da Travessa da Maria Travessa e acompanhava suas fichas médicas, escrevia cartas para seus familiares, ajudava a conseguir creches para seus filhos. Às vezes entrava em sala de bate-papos, com pseudônimos masculinos, em salas de sexo e denunciava apelidos e conversas relacionados a pedofilia, zoofilia, tráfico de mulheres. Duvidava da eficácia das denúncias e das garantias de sigilo, mas fazia. Escreveu para mais de vinte provedores perguntando por que não usavam filtros mais eficientes para detectar situações criminosas. Também denunciava vídeos de sexo explícito claramente postados sem a autorização dos envolvidos (celulares roubados, namorados ressentidos etc.): qualquer um identificava, mas quase a totalidade das pessoas aceitava em silêncio e se comprazia com a exposição alheia. Lili não perdia tempo e vislumbrava um mundo em que a liberdade sexual fosse mesmo combinada entre as partes e não aniquilasse, com formatos diversos, na qual desapareceriam prostituição, pornografia, tráfico humano. Haveria espaço para vídeos nessa Utopia? Sim, caseiros, voluntários, distribuídos privada ou abertamente, mas espontâneos e sem massacrar física e psicologicamente ninguém, sobretudo as mulheres. Acho que seu nome inteiro era Lilith. O marido era José Adão.
A gravidez não a afastou de suas lutas. Apenas nos últimos dois meses dedicou-se mais à internet que às visitas à Travessa da Maria Travessa, a barriga enorme norteando seus movimentos. Lili era miudinha, a barriga a ancorava mais na terra. O parto foi doloroso, durou horas, foi preciso usar fórceps. A mãe, exausta, faleceu horas depois, não sem antes ter abençoado e amamentado o filho, robusto. O nome dele eu perdi na memória. Também não sei para onde se mudou com o pai, José Adão, meses depois. Ignoro se estuda, trabalha, se é mestre, avatar ou um bom filho da mãe. Sei que é real, a mãe o carregou e ele lhe chutou o umbigo por dentro. Lili continua em suas veias e em seu sorriso.
Assim como o Cristianismo deturpou o conceito da virgem grávida, a ficção e o imaginário popular oscilam entre a ressignificação e o caricato. O primeiro exemplo é um longa em que uma moça se diz grávida de um anjo, mas esta foi a forma que encontrou para elaborar o estupro sofrido numa estação de metrô e a gravidez decorrente. O segundo passa por uma série que traz uma moça virgem fecundada clinicamente por engano e atinge seu ápice na história do bode Calmon.
Lancelot trabalhava no garimpo havia quatro anos, para juntar dinheiro e se casar com Suellen. Quando retornou para sua cidade, a noiva estava grávida, segundo ela, do bode Calmon. Segundo a moça, de 18 anos recém-completados, ela dormia na varanda de sua casa, como é costume em Soledade de Dentro, BA, quando o bode Calmon, do vizinho Ramiro, teria pulado a cerca e se refestelado sexualmente com ela enquanto a mesma dormia.
Suellen afirma, ainda, que acordava úmida e vermelha e acredita que a ação do bode tenha ocorrido várias vezes. Lancelot, de 48 anos, procurou o pastor da igreja e lhe relatou o ocorrido. Em resposta, o pastor sustentou confiar em sua ovelha que, mesmo grávida por ter sido abusada pelo bode Calmon, continua virgem.
O pai de Suellen, por sua vez, não acredita na filha. “Ela sempre teve um carinho especial pelo Calmon, quando vinha pastar no nosso quintal, mas nunca pensei que fosse coisa de rapariga. Agora já está feito. A mãe tem medo que o menino nasça com cara de bode.”
Lancelot afirma que nada mudou. “Trabalhei muito no garimpo para casar com ela. Mesmo esperando um menino, é virgem, o pastor explicou. Eu quero é me casar logo.” Os pais de Lancelot, contudo, não acredita na versão de Suellen. “Ela não vai ao médico, chora, não fala coisa com coisa. Meu marido já tentou abrir os olhos do Lancelot, não cumprimenta o pastor na rua e nem me deixa mais frequentar a igreja”, afirma Dona Arminda. A pedido dos vizinhos (pais e maridos), Ramiro castrou o bode Calmon.
Noite dessas sonhei com uma mulher grávida, de pele brilhante, a barriga ainda média, ensaiando os primeiros meses. Estava sentada sobre uma pedra, o tempo era sereno, ventava fresco, embora o sol fosse alto. Eu a saldei com um sorriso e perguntei seu nome. Ela respondeu: “Meu filho, eu sou Deus.” Daí me veio um desejo grande de me deitar em seu colo, a cabeça na barriga gravidinha, tomar o seio direito com a boca e mamar do leite bom que eu sabia estava lá disponível para mim. Tive medo, vergonha, não sei bem. Confuso, falei (orei?): “Senhora Deus, o que deseja de mim?”. Ela respondeu: “Nada não, meu filho. Seja você mesmo que já está de bom tamanho.” Agradeci e ela me apontou em direção à mata. Havia uma moça negra, de pele bem escura, os cabelos ruivos e compridos. Senhora Deus me disse: “Faça amor com ela, meu filho, e a engravide. Assim, os dois serão sempre virgens.”. Eu fui e ambos nos embolamos no chão, com prazer, alegria e intimidade. Dormimos abraçados. Quando acordamos, a moça estava grávida, com a barriga pequena, igual à Senhora Deus. Enquanto conversávamos os três, as barrigas delas duas foram crescendo. Senhora Deus foi a primeira a dar à luz. Era um menino crescidinho, ela rompeu o cordão e me pediu para segurar a criança. Quando o apertei no peito, ele entrou em mim e eu entendi que o menino era eu mesmo, eu me encontrando, eu renascido, agora comigo mesmo de novo. Então a moça deu à luz o fruto da nossa alegria, do nosso prazer e do embolo no chão, com ternura e força, mas não era uma criança não, e sim um livro de capa dura e preta, uma vela de quarta (21 dias) amarela e um pião de madeira com corda. A Senhora Deus nos disse: “Agora, vocês sejam sábios e recriem o mundo!”. Minha companheira e eu abrimos o livro, colocamos a vela de quarta em cima, ela a acendeu com um sopro e, em cima da chama, botei o pião pra rodar. Pronto: o mundo estava recriado. Não precisou de dilúvio, meteoro, nada disso.
(Ademir Barbosa Júnior/Dermes. De um livro de contos ainda inédito)
Com dezenas de livros publicados (alguns com traduções para diversos idiomas, outros com premiações, indicações e certificações como PNLD e PNBE), Ademir Barbosa Júnior (Dermes) também publicou 36 revistas especializadas, com temáticas diversas, publicadas no Brasil e distribuídas também em Portugal. É Mestre em Literatura Brasileira pela USP, onde também se graduou em Letras, Doutor Honoris Causa pelo MCNG-IEG (SP) pela FEBACLA (RJ), Pós-graduado em Ciências da Religião pelo Instituto Prominas e titular da cadeira 62 da Academia Independente de Letras.