Suicídio: O mito dos 90%

Suicídio: O mito dos 90%

NAZARÉ JACOBUCCI

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“Não tenho certeza de nada, mas a visão das estrelas me faz sonhar” 
(Vicent van Gogh – pintor holandês, morreu aos 37 anos num ato de suicídio)

No dia 10 de setembro, foi comemorado o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio. Durante todo o mês, prédios públicos estarão iluminados com a cor amarela, como forma de alerta. O movimento “Setembro Amarelo” é estimulado mundialmente pela IASP – Associação Internacional pela Prevenção do Suicídio – e tem por objetivo conscientizar a população sobre a realidade do suicídio e mostrar que existe prevenção. A ideia é discutir o assunto e divulgar ações preventivas.

Há um ponto que me chama muito a atenção em relação ao fenômeno suicídio; os números. E, infelizmente estes crescem elevadamente. Por ano, quase 800 mil pessoas em todo o mundo cometem suicídio, que é a segunda maior causa de morte entre pessoas de 15 a 29 anos de idade. Os números foram divulgados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A cada 40 segundos, uma pessoa se suicida no planeta. De acordo com o organismo internacional, todos os países, sejam eles ricos ou pobres, registram casos de suicídio. Mas quase 80% desses óbitos são identificados em nações de renda baixa e média, segundo dados de 2016.

Dentre as muitas leituras que realizei sobre o Setembro Amarelo e, que envolviam números, o texto da Psicóloga Luciana França Cescon me chamou a atenção, aliás, ela me autorizou a compartilhá-lo na íntegra. O artigo nos convida a refletir sobre uma ideia habitual que permeia o complexo fenômeno do suicídio. A ideia de que 90% dos suicídios poderiam ser evitados.

“Os 90%”

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Começo este texto reconhecendo que, 90% dos sobreviventes enlutados por suicídio, podem estar sofrendo com uma informação distorcida que é amplamente divulgada quando se fala em prevenção do suicídio, especialmente durante o “setembro amarelo”: a ideia de que 90% dos casos de suicídio poderiam ser evitados.

Jogo essa informação no Google e aparecem cerca de 131.000 resultados. A maioria deles estão relacionados a matérias publicadas em jornais, mas o dado ainda aparece também nas falas de alguns profissionais.

Tenho que admitir que nos meus primeiros estudos sobre o tema, essa informação me impactou e também foi utilizada na minha dissertação de Mestrado. No meu trabalho, “Cuidado, frágil: aproximações e distanciamentos de trabalhadores de um CAPS na atenção ao suicídio” (2015), eu compreendia que o serviço de saúde mental no qual eu trabalhava deveria repensar sua forma de atender os casos de risco de suicídio, oferecendo um acolhimento mais rápido e que oferecesse cuidado além do acompanhamento psiquiátrico, incluindo toda a equipe. Os 90% foram citados por mim como um indicativo que nos mostrava o tanto que havia para ser feito.

O aprofundamento nos estudos sobre o tema me fez perceber que quando falamos de um evento tão complexo não podemos reduzi-lo a checklists e estatísticas simplistas. O comportamento suicida é multideterminado e envolve aspectos biológicos, psicológicos, econômicos, sociais, culturais, e para cada pessoa tem uma história única.

De acordo com o Dr. Neury Botega, psiquiatra, uma das principais referências brasileiras sobre comportamento suicida e autor do livro Crise suicida, entre outros, em vídeo divulgado no seu Instagram @neurybotega. Ele diz:
[Isso é um mito que se originou na leitura apressada de um artigo científico publicado há alguns anos, mostrando que na maioria dos casos das pessoas que se mataram um transtorno mental estava presente entre os vários fatores que levaram a pessoa ao suicídio.

Com isso, uma leitura apressada fez muitos concluírem o seguinte: Se em 90% dos casos de suicídio há um transtorno mental, então a gente pode curar o transtorno mental e evitar 90% dos suicídios. Quem disse que essa mágica ocorre no dia a dia? Então, é errado dizermos que em 90% dos casos o suicídio pode ser evitado. Imagine um pai, uma mãe, que perdeu um filho, o que fica pensando sobre esses 90%? estes ficam pulsando na cabeça.

É um erro de interpretação. Nenhuma sociedade em nenhum momento da história conseguiu trazer o número de suicídio para apenas 10% da média. Isso é impossível. Então nós não podemos divulgar esse mito].

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Há também um outro aspecto a ser considerado sobre os 90%. As pessoas enlutadas pela perda de um ente querido por suicídio. Minha experiência com os sobreviventes enlutados também tem mostrado que ao divulgar-se sinais de alerta, advertindo que nem sempre estes sinais serão claros, e ao falar sobre os 90%, parece que se está atribuindo às pessoas próximas a responsabilidade por não ter impedido a morte de seu ente querido.

Terezinha Máximo, a quem muito admiro, escreveu sobre isso no blog No M’oblidis:
[Você acabou de perder alguém que ama por suicídio e está arrasado e ao procurar informações sobre o tema dá de cara com a seguinte afirmação: “90% DOS SUICÍDIOS PODERIAM SER EVITADOS”
Com certeza você que já está se sentindo péssimo, ficará pior. […] As pessoas que convivem com ela saberão identificar os sinais e como oferecer apoio? […] Então caro enlutado, não fique se achando a pior pessoa do mundo por não ter evitado o suicídio do seu ente querido, você não teria como ter ajudado se não possuía as informações necessárias e não fazia ideia de como agir].

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Por conta disso, não podemos afirmar uma porcentagem exata acerca de nada que é humano. Não posso afirmar que 90% dos sobreviventes enlutados sofrem diante desta informação incorreta, mas posso afirmar que ela traz uma carga de angústia para uma grande parte deles. Talvez, 90% das pessoas que acessarem esse texto possam refletir acerca do perigo de fazer reducionismos nas explicações sobre o comportamento suicida. Mas, não posso afirmar isso.

(Publicado em: Site – Instituto Vita Alere em 11.09.19)

Como pudemos observar o tema suicídio é permeado por uma complexidade singular e precisa ser discutido, não somente pelos profissionais da saúde, mas sim por toda a sociedade. Por isso, precisamos falar sobre este fenômeno que muitas vezes é ignorado, esquecido e considerado tabu em nossa sociedade.

Nazaré Jacobucci
Pós Graduada / Mestranda em Cuidados Paliativos na Fac. de Med. da Univ. de Lisboa
Psicóloga Especialista em Luto
Especialista em Psicologia Hospitalar
Psychotherapist Member of British Psychological Society (MBPsS/GBC)
http://www.perdaseluto.com





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