Incentivar a independência dos filhos é uma das faces do amor
Incentivar a independência dos filhos é uma das faces do amor.
É preciso confiar que os filhos são capazes e deixá-los livres para aprender e fazer escolhas
Desde que aprendeu a segurar os talheres, Esther Letícia, 3 , nunca deixou que os pais a ajudassem a comer. Já Stella, 5, acorda bem cedo, abre a geladeira e monta o próprio café da manhã. Em comum entre as duas meninas, existe uma semente de autonomia que vai ajudar, lá na frente, quando a vida começar a cobrar que elas se virem sozinhas. Contudo, incentivar a independência dos filhos não é nada fácil e demanda acolhimento e estímulo não só das crianças, mas dos adultos da relação também. Para começo de conversa, é preciso entender que, por algum tempo, a ajuda dos pais ou cuidadores será não somente importante, mas uma questão de sobrevivência.
“O bebê humano é naturalmente imaturo e totalmente dependente ao nascer. Quanto mais cuidados parentais receber maiores serão suas chances de sobreviver. Diferente da maioria dos mamíferos, o ser humano leva meses para sustentar o peso da própria cabeça, locomover-se intencionalmente e levar algum alimento à boca”, explica a psicóloga clínica Mariuza Pregnolato. O processo de independência é natural e constante mas, segundo a especialista, será significativamente enriquecedor se houver estimulação adequada. “É uma sucessão de pequeníssimas aquisições, ocorrendo simultaneamente e de modo interconectado, construindo habilidades físicas, desenvolvimento motor, vinculação afetiva, discriminação visual, cognição etc”, explica.
“A independência caminha em paralelo ao aprendizado, é constante e crescente, sofisticando-se à medida que a criança se desenvolve e aprende a socializar”
Estéphane Ranni Viana, mãe da Esther Letícia e da Yasmin Emanuele, 3 meses, sempre enxergou nesse processo de independência uma ferramenta importante para a vida de seus filhos, pela necessidade da própria família, que vive em Paulista (PE). “Eu e meu marido trabalhamos fora e estamos tentando construir nossa casa. Tenho uma família pequena aqui em Pernambuco, já a dele mora na Bahia e no Distrito Federal. Não tenho muita ajuda e, por isso, quero incentivar minhas filhas a serem independentes. Acredito que quando elas estiverem mais velhas vão saber se virar sozinhas”, conta.
Autoconhecimento é fundamental
O desejo de criar filhos independentes e conseguir transformar esse processo em algo amoroso e eficaz também passa por autoconhecimento, olhar para o próprio passado e para a infância. Esse resgate é muito importante na hora de escolher a forma de maternidade ou paternidade. Gabriela Miranda, de São Paulo (SP), mãe da Stella e do Benjamim, 9 anos, conta que essa busca a ajudou a estimular uma maior independência dos filhos. “Fui uma criança muito dependente da minha mãe, demorei para ‘soltar da barra da saia dela’, como dizem. Já adulta, ainda me sentia insegura. Só depois de morar sozinha, comecei a ter mais iniciativa”, conta.
“Sempre tentei trazer para a minha maternidade o estímulo de permitir que as crianças façam suas escolhas. Lembrando, obviamente, que cada escolha tem uma consequência”
Estéphane também fez esse processo e vê que a filha, Esther, tão pequena, mas tão independente, é parte desse olhar cuidadoso para o passado. “Eu admiro muito isso nela, pois comigo foi diferente. Não tive mãe nem pai. Minha tia e avó me criaram com certas mordomias e quando fui morar sozinha foi um ‘deus-nos-acuda’, porque até medo de panela de pressão eu tinha”, lembra, em meio a risadas.
Para que a independência dos filhos ocorra de forma mais tranquila e respeitosa possível, é preciso enxergar as próprias necessidades, respeitá-las e procurar entender o que está dificultando o processo.
“Nós, adultos, precisamos tentar ser emocionalmente estruturados, capazes de conter a própria ansiedade sempre que situações de pequeno e aparente sofrimento surgirem com os filhos”
“É importante reagir com tranquilidade, de modo que a expressão facial e suas palavras transmitam à criança uma mensagem de calma e confiança”, explica Mariuza.
Arquivo pessoal/arte Lunetas
Da esqueda para a direita: Stella, 5, brinca com o irmão Benjamim, 9; Cristina Leão comemora o aniversário em família de Maria Teresa, 11; Estéphane Ranni em foto com o marido e a filha Esther, 3
Permitir e respeitar as escolhas dos filhos
Gabriela Miranda acredita que a independência não é só ensinar a criança a fazer as coisas sozinha, é mais que isso.
“Aprendi que, se queria dar mais autonomia para meus filhos, eu teria que respeitar algumas escolhas deles”
“O Benjamim, por exemplo, sempre gostou de usar meias de pares diferentes. Por um tempo, eu trocava pela meia certa. Até perceber que, se eu queria dar essa autonomia, não poderia ficar ditando o certo e errado sobre o jeito que ele usa as meias. Quando ele tinha uns quatro anos, eu passei a permitir que as usasse do jeito dele. Hoje, eu acho o máximo ele usar as meias coloridas e diferentes e ter cabelão comprido”, conta.
Impor limites às crianças e a si mesmo também é um passo importante na trajetória de independência. A psicanalista Cristina Leão, mãe do João, 14, e da Maria Teresa, 11, conta que esse processo é essencial na construção psicológica da criança.
“O bebê, quando nasce, é um ser que está misturado à mãe. No entanto, existe uma marcação de independência, que cumpre o que chamamos de ‘função paterna’. Não necessariamente é o pai, mas um elemento separador dessa relação, como um parente, o trabalho, um hobby”, ela explica. É como se esse elemento funcionasse como ‘separador do tempo’, ou seja, aquele momento em que as mães estão realizando outras tarefas e não só dedicadas exclusivamente ao cuidado dos filhos. “Esse elemento marca os limites e é importante para uma estruturação emocional saudável”.
Cristina lembra que dividir esse cuidado com a rede de apoio ajuda principalmente as mães a conseguirem esse equilíbrio e apoiar, de fato, seus filhos a serem mais independentes.
“A mãe não é única responsável por isso, chega a ser uma violência exigir tanto delas, e tão pouco dos outros. É importante que resgatemos o conceito de coletivo”
Conquista para a vida toda
Dar ferramentas para que os filhos se cuidem sozinhos talvez seja um dos grandes desafios, segundo a psicóloga Mariuza Pregnolato.
“É muito difícil estimular a autonomia da criança porque, no fundo, a cada movimento em direção à independência, os pais se sentem perdendo importância para aquele ser amado”
“É importante que os pais cuidem do próprio equilíbrio para serem capazes de estar ao lado da criança no seu processo de descobertas, oferecendo espaço, apoio, ferramentas e suporte”, recomenda a psicóloga.
Apoiar e cuidar de um bebê totalmente dependente, estimular (na medida certa) seus primeiros passos rumo à autonomia, cuidar de si para cuidar do outro – tudo isso entra na conta na hora de fazer um processo de independência amoroso e contínuo. Parece complicado, mas não é tão difícil assim.
“Um parâmetro confiável deve ser o conforto da criança em assumir determinados desafios e decisões. O diálogo aberto e frequente dissipa dúvidas e ajuda a explicitar dificuldades que, certamente, ocorrerão durante o processo. Orientação, presença, interação afetiva, ambiente acolhedor e protegido são o cenário em que a criança cresce e se sente segura para ousar”, resume a psicóloga. Stella e Esther são exemplo de que esse processo pode ser mais leve e tranquilo, quanto mais seguros os pais estiverem.
É como a história da bicicleta: para aprender a andar de verdade, é preciso que, em algum momento, os pais soltem a mão. Só assim o passeio pela vida vai ser único e independente.
Fonte: https://lunetas.com.br