CONTRAMÃO (CONTO)

CONTRAMÃO

(CONTO)

 

Ademir Barbosa Júnior (Dermes)

 

            Meu sonho era ser mecânico, não advogado trabalhista. Quando pequeno, tinha carrinhos de plástico ou madeira, mas não podia me demorar com o mecânico e o motorista de meu pai. Adolescente, não tive carro próprio, ou melhor, tinha o da família à minha disposição, mas com motorista. Não aprendi a dirigir, nunca me sujei de graxa. Hoje tenho uma BMW. E um motorista, competente e bem pago. Para cobri-lo em folgas e férias, envia o cunhado, de confiança.

            Aos 08 anos me chamou a atenção um táxi que entrou na contramão da rua onde morávamos antes de nos mudarmos para o condomínio fechado. Todos gritamos “Contramão!” e o velhinho sorriu e acenou, dirigindo devagar. Certamente engano. O contrário de motoristas que tentam cortar caminho em ruas pequenas com padarias charmosas e investem na contramão, a alta velocidade. Às vezes atropelam crianças, sacolas, animais: não faz diferença, a desculpa é sempre a mesma, não foi intencional, precisava ganhar tempo e cortar caminho, o trânsito anda uma loucura.

            Numa transversal do prédio onde fica meu escritório, estes dias, por volta das 7 da noite, um carro estava com o motor ligado. Pedestres chegaram a chamar a polícia, uns com medo de ação terrorista, outros com inveja do que certamente viam, alguns não por moralismo, porém por inadequação territorial: era um casal transando, não se sabe por desafio ou por não ter dinheiro para o drive-in. A moça (ela que dirigia, não apenas o carro, mas a transa) deu partida antes de a polícia chegar. Isso me lembrou uma das poucas histórias ouvidas do motorista de meu pai, tomando café na cozinha. Uma vez havia ficado perdido perto de um sítio, viu um carro estacionado perto de um bambuzal, uma luzinha acesa apenas, parou e pediu informação para o motorista. De repente uma moça agachada se levantou, os lábios bem molhados, passou as costas da mão direita na boca e disse, ofegante “Segue reto, moço, segue reto” e abaixou de novo. O motorista do carro com a luzinha sorriu para o motorista do meu pai, que acenou com a cabeça e seguiu reto, seguiu reto, mesmo sem ter certeza se era o caminho.

            Nunca fui de comentar sobre carros, até por não conhecer quase nada e não saber dirigir. Tive uma noiva que adorava, sabia marcas, modelos, cores, fazia trocadilhos com placas. Um dia comentei que já havia andado em Mercedes, com uma ex, dona de uma rede de bancas de jornais que coordenava um clube de “mercedeiras”, e com amigos em Lisboa, no Porto e em Frankfurt. Ela disse, desdenhosa, “Eu também, mas não era minha.” Às vezes mudava de opinião, assim, do nada, ficava do contra. Eu havia puxado o assunto porque sabia que ela gostava. Como havia sido garota de programa em Copabacana (meu pai não sabe até hoje), certamente a menção à Mercedes havia lembrado momentos em que também havia sido item de consumo, exibição, coleção. Chamava-se Tânia. O nome de guerra eu nunca soube.

            Não me casei com Tânia, que sumiu do grupo de amigos e se acabou no crack. Aprendi muito com ela. Estes dias ouvi uns ruídos na barriga. “São as águas internas falando”, como ela dizia. Lembrei com saudades, olhando a chuva da janela enorme da BMW, no banco de trás. Na avenida grupos de torcedores rivais ensaiavam uma tempestade de paus, pedras e sangue. Uma das torcidas gritava: “Tu vale menos/eu valho mais/Porque sou filho de Satanás!”. Meu motorista foi rápido e deu meia volta, entrando numa ruazinha arborizada. Pela contramão.

 

(De um livro ainda inédito)

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Com dezenas de livros publicados (alguns com traduções para diversos idiomas, outros com premiações, indicações e certificações como PNLD e PNBE), Ademir Barbosa Júnior (Dermes) também publicou 36 revistas especializadas, com temáticas diversas, publicadas no Brasil e distribuídas também em Portugal. É Mestre em Literatura Brasileira pela USP, onde também se graduou em Letras, Doutor Honoris Causa pelo MCNG-IEG (SP) pela FEBACLA (RJ), Pós-graduado em Ciências da Religião pelo Instituto Prominas e titular da cadeira 62 da Academia Independente de Letras.

 

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