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NATURALIZAÇÃO DO NEONAZISMO NO ENSINO BRASILEIRO

NATURALIZAÇÃO DO NEONAZISMO NO ENSINO BRASILEIRO

 

            Numa festa junina, em 2017, o diretor da escola onde eu lecionava se referiu como modelo de diversidade educacional o fato de ter entre os docentes o proprietário de uma piscina com azulejos formando uma suástica. Aturdido, ia comentar que o fato pedia uma comunicação de crime, mas ele saiu da roda de conversa. Eu lecionava na instituição desde o início de 2015 (ficaria até julho de 2019, quando me mudei de estado), mas nunca havia escutado qualquer referência a essa história. Depois daquela noite, até a esqueci.

            Contudo, no início de agosto, uma aluna havia me procurado porque o referido professor, em sala de aula, fazia comentários misóginos e excludentes de toda sorte. Então iniciei uma busca na internet, com o intuito de fazer uma comunicação de crime, quando descobri que a história da piscina era de conhecimento público e nacional e o Ministério Público não havia reconhecido no fato apologia ao nazismo, retendo, quando do processo, nos anos 90, apenas alguns objetos bélicos de origem alemã.

            Importante ressaltar que a cidade onde eu residia e lecionava tem seu teatro municipal no formato do quepe de Hitler, aguardado para uma visita que nunca se concretizou. Quanto ao professor, seu filho biológico tem o nome de Adolf como gesto de admiração ao Führer. É bastante conhecido no país todo e, se na net pululam manifestações de repúdio de ex-alunos, também se encontram fotos e vídeos em cerimônias escolares públicas em que a saudação nazista é feita em sua homenagem.

            O processo de naturalização folclórica de suas falas e atitudes levava funcionários da instituição onde eu lecionava a chamá-lo carinhosamente de Herr Fulano. Na internet, toda vez que um órgão de imprensa aludia à piscina com suástica nazista em sítio de sua propriedade, a maior parte da população registrava sua indignação, questionando-se se a imprensa carece de temas mais interessantes para abordar, sob a alegação de que o professor deveria ser deixado em paz. 

            Dentre os históricos de ataques a negros, religiosos tradicionais de terreiros e outros, a cidade registrou nos últimos anos cartazes com símbolos da Ku-Klux-Klan, com falas extremamente agressivas. Embora grupos neonazistas sejam bastante influentes no Sul do país, investigações especializadas apontam suas lideranças no Estado de São Paulo.

            O professor já foi tema de matéria sobre neonazismo em revista de circulação nacional, sempre apontado pelo diretor da escola onde lecionei como o melhor professor de História do estado.  Os alunos, por sua vez, costumam repetir que não é nada do que dizem por aí, e sim uma pessoa brincalhona.

            Enquanto alguns alunos procuravam a mim e a outros professores, bem como a direção, para registrar reclamações diversas, sempre sem efeito, alguns, encantados por seu discurso, alteravam totalmente o comportamento, tornando-se arredios, e sisudos, alguns com andar marcial, faltando às aulas de Linguagens e Humanidades, bem como afirmando que, na redação do ENEM, se posicionariam contra os Direitos Humanos. No cotidiano das aulas, negavam existir a cultura do estupro no Brasil e posicionavam-se categoricamente contra o ensino público básico no país. Além disso, situavam os negros escravizados em posição melhor enquanto tais, em oposição à emancipação própria, por alforria dos antigos proprietários ou por foça de lei, uma vez que, na condição de escravizados, tinham alimento e pouso. Nisso eram secundados por outro professor, negro, segundo quem “a escravidão não foi tudo isso que dizem”. 

            Negacionista da ditadura militar, inclusive em sucessivas manifestações na grande imprensa, o professor já provocou a saída de sala de aula de alunos que tiveram parentes torturados nos anos de chumbo no Brasil. Distribuía entre os alunos livros negacionistas tanto sobre a ditadura militar brasileira quanto sobre o holocausto alemão, todos eles de circulação proibida por lei, os quais, contudo, podem ser encontrado com facilidade em livrarias da cidade.

            Em tal ambiente, onde vicejava a falácia da chamada “escola sem partido”, onde a ideologia dominante é exatamente a proibição de se discutirem com os alunos as diversas ideologias, de modo aberto, dialógico e dialético, tanto o diretor quanto o professor faziam apologia àquele que, em 2018, seria eleito presidente da República. Muitos alunos se queixavam dessa postura tendenciosa que não identificavam nos demais professores que não apoiavam o referido candidato. Por todas essas razões, alguns alunos se desligaram da escola, não sem antes procurar a mim e a outros professores para desabafarem diante de uma situação insustentável. Conceitos como “Esquerda” e “Direita”, “Extrema Esquerda” e “Extrema Direita” eram abordados de maneira extremamente maniqueísta, irreal e de modo contrário à construção do pensamento autônomo por parte dos alunos.

            A respeito da forma desastrosa como professores e outros profissionais éramos tratados, com o não cumprimento de combinados e o explícito desrespeito a alguns direitos trabalhistas, sob a cantilena de “jobs” e “start-ups”, bem como da suspeita de desvio de recursos administrativos, não trato aqui, não apenas por serem extremamente dolorosas para mim, mas também porque não é o cerne do texto.

            Como efeito da apologia ao neonazismo (em propriedade particular, na escola, na disseminação de livros negacionistas em apoio a torturadores, nazistas e neonazistas), convivi com aberrações como estudantes brancos que, por conveniência, tentavam declarar-se negros para serem avaliados conforme o sistema de cotas e outros que, ao pregar o chamado Estado mínimo (sempre “mínimo” para a grande população), ao serem aprovados em universidades, engalfinham-se com as representações estudantis para conseguir bolsas de estudo e fomento de pesquisa.

            Se tudo isso não é caso de polícia e doutrinação ideológica, não sei, então, do que se trata. Relato uma experiência pessoal, contudo a insistência do atual governo na militarização do ensino, no negacionismo científico e no desmonte do ensino público (do Fundamental à Pós-graduação) evidenciam um pacto estruturado em prol do obscurantismo e do autoritarismo, o qual, aliás, nunca foi segredo para ninguém. Espantam-me a impunidade associada à naturalização do processo.

 

Ademir Barbosa Júnior (Dermes) é escritor e professor. Mestre em Literatura Brasileira pela USP,  onde também se graduou, Doutor honoris Causa pelo MCNG-IEG (2018) e pela FEBACLA (2019) e Pós-graduado em Ciências da Religião pelo Instituto Prominas. Tem diversos livros publicados, alguns deles com traduções para vários idiomas.

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