Adriana Chiari Magazine

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A Impermanência, o Medo, a Consciência!

A Impermanência, o Medo, a Consciência!

 NAZARÉ JACOBUCCI

“Não! O planeta não está em ruínas. O que está em ruínas é a velha estrutura da insensatez, aliada à cultura do consumismo e do lucro, a qual a humanidade estava alicerçada”
(Nazaré Jacobucci)

Caro leitor, minha escrita desta vez será diferente. Abordarei algumas questões que permeiam o contexto atual. Mas também trarei para reflexão uma análise, segundo o meu olhar, da forma como nós estávamos nos comportando diante dos recursos naturais do planeta e perante as outras pessoas. Trarei alguns dados estatísticos e comentários de alguns estudiosos para que você entenda o quão nós somos responsáveis pela conjuntura atual da humanidade. Sim! Todos nós somos agentes do cenário presente.

Há muito tempo que, por meio da escrita, busco promover uma reflexão sobre o apego e a falta de consciência acerca da impermanência. Recentemente escrevi a respeito desse tema e no texto digo: não há nenhuma garantia que aquilo que planejamos para a vida aconteça. Não há! Tudo pode mudar a qualquer momento e para sempre.
Desde as últimas semanas as pessoas assistem incrédulas suas vidas, a de seus amigos, a do seu bairro, a do seu país, a do planeta, mudarem a cada dia. E não foram mudanças simples. Tudo o que nos era familiar se tornou estranhamente diferente. A maneira como vivíamos neste planeta não existe mais.

Quando ocorrem mudanças drásticas, que transformam nossa forma de se relacionar com o ofício de viver, é natural sentirmos medo e, por vezes, ansiedade. Neste momento a fragilidade humana está exposta diante do desconhecido. Não sabemos que proporções essa pandemia viral pode alcançar e, muito menos, quando ela terminará. Diante das incertezas, onde há mais perguntas do que respostas, somos tomados por uma série de sentimentos muitas vezes inexplicáveis. Não é tarefa fácil manter a serenidade no meio do caos, mas precisamos buscar estratégias, internas e externas, para tentarmos manter o equilíbrio entre o medo e a coragem, a ansiedade e a serenidade. Recursos estes que podemos encontrar no apoio social, espiritual e/ou com ajuda de profissionais qualificados. E muito desses recursos estão disponíveis de forma virtual.

No entanto, esse acontecimento, no meu entender, é uma excelente oportunidade para refletirmos sobre alguns aspectos relacionados à forma como nós humanos estávamos nos comportando. E, se me permitem, estávamos nos comportando muito mal. Comportamento este que se refletia nas relações humanas, na relação com o meio ambiente, com os recursos naturais, com o consumo exacerbado e, porque não dizer, nas relações de poder. Irei começar a minha análise pelo berço de grandes epidemias.

A China tem sido o berço de grandes epidemias do planeta e isso acontece desde a Idade Média. No século 14, o país deu origem à Peste Bubônica cuja bactéria era transmitida ao ser humano por pulgas que infestavam ratos e outros roedores. A doença chegou à Europa em 1343 pela rota da seda. Estima-se que a peste, na época, matou pelo menos 75 milhões de pessoas, cerca de 15% da população mundial estimada na época. Depois o país foi novamente o epicentro de outras epidemias que tiveram alcance mundial; a Gripe Asiática em 1957/58 vitimando 2 milhões de pessoas; a SARS em 2003 e a Gripe Aviária em 2005 que acarretou o abatimento de milhares de aves ao redor do mundo. No Reino Unido uma única granja abateu 160 mil aves infectadas. Neste momento você deva estar se perguntando: mas por que a China é o berço de tantas epidemias? A resposta envolve vários fatores.

Dois fatores que considero principais contribuem de forma direta: o fator sociodemográfico e o econômico. A população mundial continua a crescer, a um ritmo preocupante. Estima-se que a população global chegou a 7,7 bilhões, em abril de 2019. Segundo a ONU a China tem 1,4 bilhão de habitantes e a Índia 1,3 bilhão. Ambos continuam sendo os países mais populosos, com uma porcentagem de 19% e 18% do total da população global, respectivamente. E a maioria dessas populações vivem nas cidades. Segundo Luna, esta urbanização significa aglomeração intensa, com populações grandes vivendo em espaço reduzido; saneamento inadequado, tanto em relação ao abastecimento da água, quanto aos sistemas de esgotamento sanitário e destinação de resíduos sólidos; habitação precária; falta de infraestrutura urbana e agressão ao meio ambiente; proliferação de fauna sinantrópica (animais que se adaptaram a viver junto ao homem, mas que podem transmitir doenças, vírus e causar agravos à saúde dos seres humano) alguns desses animais são comercializados nos mercados chineses. Não precisamos ser cientistas para sabermos que esse cenário é altamente propício para a proliferação de doenças que podem acarretar epidemias e pandemias.

Sim! Muitos dos vírus que nos causam doenças têm origem em animais. No caso do COVID-19, parece ter sido originado no contato com morcego. Muitos mercados chineses e do Sudeste da Ásia, como o de Wuhan, os animais estão vivos e são mortos e vendidos aos clientes na hora. São diferentes animais, retirados de seu habitat selvagem e colocados em gaiolas ainda vivos. E, muitos desses mercados funcionam em condições insalubres sendo locais de proliferação de vírus e bactérias. Quando um ser humano consome um desses animais que esteja infectado, o vírus pode então, potencialmente, infectar esse ser humano. E, se esse vírus passa para outro humano está iniciado um surto viral. Porém, o consumo desses animais está muito além da culinária exótica praticada na Ásia, há uma questão econômica. Muitas pessoas lucram com o comércio de animais selvagens hoje.

Segundo Myers, a Wildlife Conservation Society, uma ONG sediada em Nova York, aliás sugiro que visitem o site desta ONG https://www.wcs.org/, pediu a proibição global do comércio de animais silvestres, especialmente em mercados como os da China, que se revelaram como ameaça à saúde pública após o último surto. A WCS é enfática nesta questão – para prevenir futuros grandes surtos virais, como o surto de COVID-19, impactando a saúde humana, o bem-estar, as economias e a segurança em escala global, a WCS recomenda parar todo o comércio de vida selvagem‎ ‎para consumo humano (particularmente de aves e mamíferos) e fechamento de todos esses mercados.‎

Neste sentido, quando o fator econômico passa a ter um peso maior em detrimento ao cuidado humano temos como consequência uma série de problemas difíceis de gerenciar. Segundo Woetzel e colegas, a China se tornou o maior exportador mundial de mercadorias em 2009 e a maior nação comercializadora de mercadorias em 2013. Sua participação no comércio global de mercadorias aumentou de 1,9% em 2000 para 11,4% em 2017. Em uma análise de 186 países, a China é o maior destino de exportação para 33 países e a maior fonte de importações para 65. O impacto desse crescimento econômico no meio ambiente também têm proporções gigantescas. A China tem sido a maior fonte mundial de emissões de carbono desde 2006 e hoje representa 28% das emissões globais anuais. O economista de recursos ambientais Marshall Burke calcula que dois meses de redução da poluição na China provavelmente salvará a vida de aproximadamente 4.000 crianças com menos de cinco anos e 73.000 adultos com mais de 70 anos, que de outra forma teriam sido afetados pelos altos níveis de poluição.

No entanto, começamos a perceber uma mudança de postura do governo chinês a respeito do assunto. O país tem investido fortemente em energia renovável. Em 2017, investiu cerca de US$ 127 bilhões, 45% do total global e três vezes maior que o investimento nos EUA e na Europa, cada um com US$ 41 bilhões. Além de ser motivada por seu compromisso como signatária do Acordo de Paris de reduzir sua intensidade de carbono em 40 a 45% entre 2005 e 2020.

Neste sentido, como consumidores aqui começa a nossa responsabilidade. Quando um cidadão europeu entra numa loja de comércio popular de origem irlandesa e compra uma camiseta fabricada, em algum lugar da Ásia, por € 3,00 ou no país onde resido a Inglaterra por £ 3,00 é praticamente impossível não haver o questionamento: como uma camiseta pode custar tão barato? Isso só é possível porque há muita mão de obra barata para fabricar estas mesmas camisetas. Um trabalhador na indústria chinesa ganha em média US$ 3,60 por hora, no Brasil é ainda pior o valor é de US$ 2,90. No entanto, a receita da loja de comércio popular no ano de 2019 fora de £ 7,8 bilhões de libras. Aqui também não precisamos ser analistas econômicos para percebermos que há um desequilíbrio abissal entre o ganho dos trabalhadores e o lucro dos empresários.

Após expor todos esses dados e, por estarmos vivenciando um momento de paralisação coletiva ímpar na história da sociedade contemporânea, seria interessante emergir uma nova consciência sobre a forma como estamos vivendo neste planeta. Entramos numa espiral desmedida de consumismo e, como sempre, estávamos atolados em nossas agendas, repletas de afazeres, e não tínhamos tempo de parar e refletir sobre tais questões. Mas agora a reflexão se faz urgente. Pois, ao consumirmos cada vez mais, as indústrias precisam entrar num processo incessantemente de produção, com isso mais agentes poluentes são lançados no ar, e claro, toneladas de lixo são produzidas, e assim por diante.

Pare um minuto e reflita – será que eu preciso comprar tanto? Será que o que eu estou comprando é realmente necessário? Será que preciso mesmo comprar um casaco novo a cada inverno? Será que preciso ter uma bolsa que combine com cada sapato? Por que comprar online se eu posso caminhar até o comércio local da minha cidade e posso prestigiar as lojas do meu bairro? Será que preciso trocar o aparelho celular a cada novo modelo lançado? Esses são apenas alguns exemplos.

Não precisamos de fábricas produzindo uma gama infinita de mercadorias descartáveis, de shopping centers e de plataformas online de compras com produtos inúteis. Precisamos de fábricas produzindo produtos úteis para o cuidado humano. Precisamos construir hospitais equipados para dar conta de cuidar da população cada vez mais idosa em todos os países. Essa nova pandemia provou o quanto os sistemas de saúde de diversos países estão saturados e precisam de investimentos urgentes. Precisamos de laboratórios para que cientistas possam estudar as novas e velhas doenças. Precisamos de escolas que forneçam uma educação de qualidade e que preparem os profissionais para os grandes desafios que a humanidade ainda há de experienciar. E, por fim, precisamos de profissionais da área da logística que possam gerenciar os bancos de alimentos e rastrear a distribuição de alimentos no mundo. Há muito desperdiço nos países ricos e muita fome nos países pobres.

Uma nova consciência se faz necessária para que possamos viver de forma mais digna e justa neste pequeno planeta. Precisamos sair da bolha em que vivíamos e ter um olhar mais atento ao que acontece ao nosso redor e às pessoas que nos cercam. Hora de deixarmos o supérfluo e centrarmos no essencial para a vida e para a alma.
Ao terminar esse texto lembrei-me do discurso final de Charles Chaplin no filme o “Grande Ditador” de 1940 que é perfeito para esse momento.

“Não sois máquina! Homens é que sois!… Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontrares, levanta os olhos! Vês, Hannah? O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo das trevas para a luz! Vamos entrando num mundo novo – um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergue os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos, Hannah! Ergue os olhos!”

Nazaré Jacobucci
Mestranda em Cuidados Paliativos na Fac. de Medicina da Universidade de Lisboa
Psicóloga Especialista em Perdas e Luto
Especialista em Psicologia Hospitalar
Psychotherapist Member of British Psychological Society (MBPsS/GBC)
http://www.perdaseluto.com

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