Adriana Chiari Magazine

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ORIXÁS, CABOCLOS E GUIAS: DEUSES OU DEMÔNIOS?

ORIXÁS, CABOCLOS E GUIAS: DEUSES OU DEMÔNIOS?

 

 

            O relançamento do livro “Orixás, Caboclos e Guias: deuses ou demônios?” de autoria do bispo Edir Macedo (Igreja Universal do Reino de Deus) no dia 02 de agosto deste ano, guardados os direitos legais de liberdade de expressão, avilta a espiritualidade das religiões tradicionais de terreiro, uma vez que incita contra elas o discurso fundamentalista do ódio. Por essa mesma razão, recentemente, ainda que em horário de pouca audiência, a Rede Record, ligada à referia IURD, passou a cumprir medida judicial exibindo vídeos de retratação a difamações feitas contra essas mesmas religiões.

            Historicamente o chamado Povo de Axé tem tido suas religiões demonizadas, sendo-lhe atribuídas toda sorte de maldade, mazela ou falta de ética. Apesar da especificidade dos ataques verbais, físicos (inclusive com assassinatos) e territoriais (destruição de templos), defender o direito constitucional de liberdade de culto e debelar a discriminação imposta em massa por livros como o do bispo Macedo é uma luta de toda sociedade, em primeiro lugar porque o estado é laico e, em segundo, mas não menos importante, porque vivemos uma espécie de fundamentalismo religioso institucional baseado na chamada “Bancada da Bíblia” no Congresso Nacional e ratificada em 2017 pelo hoje presidente Jair Bolsonaro, segundo quem “não tem essa historinha de Estado laico não. O Estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude. As minorias têm que se curvar para as maiorias.”.

            Negar a identidade religiosa dos Povos de Terreiro, demonizando-a, é também negar parcela significativa da cultura brasileira (música, culinária, costumes diversos), bem como sua ancestralidade primeira indígena (Caboclos) e africana (Orixás, Inquices, Voduns, Pretos-velhos), bem como a matriz europeia, conforme se verifica respectivamente no culto a determinadas Entidades de Umbanda e a alguns Encantados, como nas Casas de Minas no Maranhão. Ademais, tal identidade é definida pelo próprio Povo de Axé e suas tradições, e não, ainda mais de maneira preconceituosa, estereotipada e excludente, por outro segmento religioso que lhe subtrai o lugar de fala e se nega ao diálogo inter-religioso e cidadão.

            A campanha difamatória perpetrada pela IURD contra as religiões tradicionais de terreiro, além de antifraterna, ameaça também a autonomia do estado laico, no qual, sem sombra de dúvida, religião é também questão de cidadania. Entidades representativas do Povo de Axé têm se organizado especificamente nos últimos dias para amplificar o diálogo a respeito de sua identidade, bem como buscar caminhos legais que busquem sanar os descaminhos do discurso de ódio contido no livro em questão.

Conforme célebre provérbio iorubá, “Ibiti enia ko si, ko si imalê” (“Onde não há humanidade, não há Divindade). Em 1 João 4: 20, lê-se, analogamente, “porquanto quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não enxerga.”. Queixo-me ao bispo: espalhar o ódio em nome do Mestre do Amor, Jesus, é um grande contrassenso à humanidade. O estado democrático não se cala diante de novas inquisições.

Em tempo: Caboclos são Guias espirituais. Orixás, teologicamente definidos de maneiras distintas conforme os segmentos específicos da diversificada espiritualidade dos terreiros e suas religiões, são divindades atreladas a princípios monoteístas com denominações diversas, como Zâmbi (origem Angola) ou Olorum (origem Ketu/Nagô). Quanto aos demônios, o Povo de Axé não os cultua, em primeiro lugar porque acredita que a religião deve fazer o bem e respeitar o livro arbítrio. Em segundo lugar, porque não acredita no mal absoluto, mas na manifestação de espíritos que se perderam em ações maléficas e que podem e devem ser curados e acolhidos, encarnados ou desencarnados. Portanto, mais do que abertas, as portas dos terreiros mantêm-se escancaradas para quem realmente desejar conhecê-los.

Axé!

 

Ademir Barbosa Júnior (Pai Dermes de Xangô) é sacerdote umbandista, Mestre em Literatura Brasileira pela USP, Doutor Honoris Causa pelo MCNG-IEG e Pós-graduado em Ciências da Religião pelo Instituto Prominas. É autor de dezenas de livros sobre a espiritualidade das religiões tradicionais de terreiro.