Adriana Chiari Magazine

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A DEUSA DO ÉBANO DA FILOSOFIA

A DEUSA DO ÉBANO DA FILOSOFIA

A MULHER NEGRA E ATIVISTA QUE TRANSFORMOU O MERCADO EDITORIAL BRASILEIRO

Valnei Nunes

Jornalista

 Enquanto espero no jardim de seu prédio, converso com o seu parceiro, Brenno Tardelli, 35, sobre as recentes conquistas editoriais da sua companheira, a filósofa ativista Djamila Ribeiro, 38. Pouco tempo depois ela surge leve, descontraída, bela e centrada sobre a luz da manhã e na luz de seu próprio conhecimento. 

 

Nascida em Santos, a ativista, que na infância ganhou medalha de bronze no campeonato santista de xadrez, aos 18 anos se envolveu com a Casa da Cultura da Mulher Negra, uma organização não governamental santista, e passou a estudar temas relacionados a gênero e raça. A escritora mestranda em Filosofia Política na Unifesp também trabalhou na Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo.

 

Djamila Ribeiro, filha de Oxóssi – Orixá Guerreiro da mata, um dos deuses mais antigos da religião do Candomblé –, teve uma infância rodeada de muito afeto de seus pais, mas também de muito conteúdo político. O pai, nascido em Santos e militante do movimento negro, desde criança participava de manifestações e reuniões de partido. Lembra que “o pai era um cara que lia muito e que deu muito dessa consciência política racial que eu e os meus irmãos temos”. A mãe, que era de Piracicaba, foi uma figura muito presente na formação de Djamila. A escritora afirma que a sua mãe “era uma mulher que não levava desaforo pra casa, que construiu muito a minha ética”. Djamila Ribeiro,que recentemente estreou num programa de TV na Rede Globo, “Amor e sexo”, da Fernanda Lima, e é também colunista online da Carta Capital, em entrevista exclusiva para Adriana Chiari Magazine fala sobre a indicação ao prêmio Jabuti deste ano, sobre o fenômeno editorial transformador que o seu trabalho tem provocado no Brasil e se preocupa com “o nível de alienação, o fascismo crescente e o ódio irracional da população brasileira”.

 

Seu último livro foi recorde de venda em muitas feiras. Quemtem medo do feminismo negrotem alguma relação com a obra do dramaturgo norte-americano Edward Albee Quem tem medo de Virginia Woolf?

 

Foi inspirado, sim. Quem tem medo do feminismo negrofoi lançado este ano em junho, pela Companhia das Letras. Foi o livro mais vendido da Flica, Feira do livro de Cachoeira, primeiro mais vendido da Flipelô, feira do livro em Salvador, e foi o terceiro mais vendido da Flipe de Parati. É um livro que foi lançado recentemente e já está na sua terceira edição. Isso mostra também o quanto as pessoas estão interessadas em ler sobre feminismo negro e entendem que isso não é só debate das mulheres negras – estamos conseguindo ampliar esse lugar.

 

Trecho de Quem tem medo do feminismo negro?

 

“Em 1988, precisei insistir para fazer a leitura principal no Dia do Livro. A professora havia escolhido uma colega de classe branca de cabelo liso que não lia bem. Eu já lia com fluência, mas mesmo assim a professora relutou. Já estávamos bem perto do dia da apresentação e a outra menina ainda não evoluía nos ensaios, então a professora não teve opção a não ser me escolher. Me saí muito bem no evento e recebi elogios de professores e pais. Mas todo dia eu tinha que ouvir piadas envolvendo meu cabelo e a cor da minha pele. Lembro que nas aulas de História sentia a orelha queimar com aquela narrativa que reduzia os negros à escravidão, como se não tivessem um passado na África, como se não houvesse existido resistência. Quando aparecia a figura de uma mulher escravizada na cartilha ou no livro, sabia que viriam comentários como ´olha a mãe da Djamila aí´. Eu odiava essas aulas ou qualquer menção ao passado escravocrata — me encolhia na carteira tentando me esconder.”

 

O meu primeiro livro, chamado O que é lugares de fala, lançado em novembro de 2017, é fruto de uma coleção chamada Feminismos Plurais, uma coleção que eu idealizei e coordeno. O objetivo é ser didático e introduzir temas para a população de maneira acessível. Os livros custam R$ 19,90 e são inspirados naquela coleção “Primeiros Passos”, lançada na década de 1970 pela editora Brasiliense. Todos os livros começam com a pergunta “O que é” e diversos autores participam e escrevem sobre determinado tema. A ideia é levar esses temas para fazer com que as pessoas reflitam criticamente. Infelizmente o conhecimento no Brasil ainda fica muito restrito a determinados grupos, e isso é manutenção de poder, as pessoas não têm a oportunidade de refletir criticamente sobre a realidade delas. Não é porque ela é uma mulher que ela vai de fato conseguir refletir sobre o machismo, não é porque você é negro que vai conseguir refletir criticamente sobre o racismo. O segundo livro foi O que é Encarceramentoem massa, por meio da editora Letramento, escrito por Juliana Borges, uma feminista negra de São Paulo. O terceiro livro foi O que é empoderamento, depois veio o quarto livro, O que é Racismo estrutural,de Silvio Almeida. O quinto livro publicado foi O que é interceccionalidade, escrito pela Carla Akotirene Santos, uma doutoranda na Bahia. O sexto livro já está na pré-venda, O que é racismo recreativo,que é um conceito de Adilson Moreira, um intelectual brasileiro e doutor em Harvard que aborda como o humor está entranhado no racismo no Brasil em

forma de piadas racistas.

 

O último livro que será lançado dessa coleção é O que é apropriação cultural,escrito pelo babalorixá do candomblé, Roginei William. A ideia da coletânea é que são todos autores negros, negras, indígenas, uma maneira de descolonizar o conhecimento, de peitar essa epistemologia no Brasil que ainda é eurocentrada, masculina, branca, e mostrar que existem outras produções. A editora Aletramento imprime os trabalhos, a gente faz praticamente tudo, eu, junto com a Ísis Virgilio, que é a minha produtora, e o Breno Adele. Eu penso os temas, convido os autores, edito os livros, produzo os lançamentos, sempre em parcerias. Por mais que o livro seja barato, a gente sabe que no Brasil R$19,90, para muitas pessoas, sobretudo para o público que a gente quer alcançar, pode ser um valor alto. Então em todos os lançamentos distribuímos 100 livros, 200 livros.

 

O interessante é que nós somos independentes. O sistema editorial do país é muito elitista, difícil de quebrar, mas nós conseguimos causar algumas rachaduras. O que é lugar de falaentrou na lista dos mais vendidos da revista Veja. Nos lançamentos a gente tem levado milhares de pessoas às ruas, e a coleção está vendendo bem. Os autores estão viajando o Brasil lançando os livros e é finalista do Jabuti, maior prêmio literário do país. 

 

É muito raro no Brasil uma editora pequena conseguir causar tanto impacto. Estamos indo para o Acre e para Salvador lançar o livro da Carla Akotirene. O bonito é que estamos levando muita gente para esses eventos, ano passado em dezembro fizemos um lançamento no Rio que fechou uma rua, cerca de 1.500 pessoas saíram na rua para comprar o livro. Aqui em São Paulo cerca de 900 pessoas compareceram ao lançamento. E agora em Cachoeira, na Bahia, tinha 2 mil pessoas. Você vê pessoas de várias idades, meninas de 12 anos, senhoras, homens, pessoas negras, brancas, as pessoas indo ao lançamento querendo comprar, querendo ouvir o que as intelectuais negras estão produzindo. Em termos de Brasil isso é muito revolucionário, deixando as pessoas um pouco assustadas ainda. 

 

Quando eu escrevi o livro, vários intelectuais brancos escreveram artigos dizendo que “O lugar de fala” era bobagem, sem sequer terem lido o livro. Mas estamos conseguindo chegar em lugares que eram inacessíveis. Há duas semanas eu fui pra Cidade Tiradentes, que é uma favela muito grande aqui em São Paulo. Tinha criança de 9 anos com os livros, a senhora fazendo um clube de leitura, as escolas adotando a prática literária. Chegar nas periferias e ver isso é algo muito potente. Em Cachoeira uma mulher me abordou com um buquê de flores “Sempre viva” que ela colheu numa zona rural na Bahia. Ela me disse: “Estou te trazendo um abraço de 180 mulheres quilombolas que leem os seus livros, de várias idades, sendo a mais idosa com 92 anos, que disse: "Eu não posso ir porque estou acamada, mas vá e leve o abraço de 180 mulheres”.

 

Você acredita que todo “esse barulho” seja uma reinvenção do próprio mercado editorial

brasileiro?

 

 

É exatamente essa “reinvenção editorial” que a minha obra tem provocado na indústria do livro. A Companhia das Letras, a maior editora do Brasil, me chamou para lançar um livro com eles por causa do barulho que estávamos fazendo. Ou seja, a forma que lançávamos e como alcançávamos os diferentes públicos era algo inteiramente fora dos padrões do mercado editorial brasileiro, mas mesmo assim conseguíamos divulgar e distribuir os livros com êxito. Aconteceu com a coleção Feminismos Pluraise com Lugares de Fala.

 

Você era próxima da vereadora Marielle Franco; gostaria que você falasse um pouco desse crime

hediondo e ainda impune que mexeu profundamente com o Brasil.

 

O assassinato da Marielle foi algo que mexeu muito com todas nós. Eu fiquei muito mal e de cama alguns dias. Eu conhecia a Marielle e eu sou muito próxima da mãe da irmã dela. Inclusive vou dar um espoiler, lancei um selo editorial Sueli Carneiro. Ela é uma grande feminista negra brasileira, fundadora do GELLE 10, Instituto da Mulher Negra de São Paulo. 

 

A coleção Feminismos Pluraiscontempla a minha geração e também contempla a negras que foram invisibilizadas historicamente. Então criei o selo para homenagear uma dessas mulheres em vida, e a Sueli Carneiro está viva, eu queria fazer o selo para publicar mulheres negras. Vamos lançar o livro da Sueli Carneiro em novembro, com uma coletânea dos artigos que ela publicou ao longo da vida. Vamos também publicar um livro escrito pela irmã da Marielle, um livro de memórias da família que será lançado no ano que vem pelo selo Sueli Carneiro. Tudo está sendo feito pela nossa equipe.

 

A Marielle era uma mulher que peitava o sistema, uma mulher negra que ousou sair desse lugar de submissão ou exotização que a sociedade brasileira espera da mulher negra. Foi a quinta vereadora mais votada no Rio de Janeiro e fez afrontamentos em relação à violência policial do Rio de Janeiro. Falar da pauta referente às mulheres ela fazia com muita coragem, e isso incomodou muitos setores da sociedade. O modo brutal com que ela foi assassinada mostra o quanto essa sociedade não aceita mulheres que tenham coragem. Estamos “na luta” para saber o que aconteceu, até hoje não se sabe quem mandou matar Marielle, por outro lado surgiu uma efervescência de mulheres negras que foram para a política. Quatro mulheres negras que trabalharam no mandato de Marielle se elegeram deputadas estaduais. 

 

Marielle se tornou uma bandeira. Estamos vivendo uma violência tão grande no Brasil, esse lado fascista que tentou apagar a história da Marielle. Dois políticos, que inclusive se elegeram, destruíram uma placa feita em homenagem a Marielle. Mas logo depois em São Paulo, houve um dia histórico! Foram produzidas mil placas em homenagem a Marielle e distribuídas nas ruas. Também em São Paulo, no mesmo dia, nomearam uma rua e distribuíram placas com o nome do capoeirista Mestre Mo, assassinado em Salvador por motivos políticos. O legado da Marielle vai permanecer vivo para sempre. Acho que a história dela inspirou muitas mulheres. O aumento do número de deputadas federais eleitas no Rio, agora, demonstra essa inspiração.

 

Na sua opinião, o que provocou essa onda de ódio no país?

O que se deu com a recente onda de violência e intolerância na população brasileira?

 

 

No Brasil existiram alguns avanços sociais nos últimos anos, como a lei de cotas e certas políticas públicas para grupos que historicamente eram invisibilizados, e esses avanços incomodaram muitos setores da sociedade. Isso foi até muito aquém do ideal e mesmo assim incomodou muita gente. Eu penso que o Brasil sempre foi um país conservador, 364 anos de escravidão negra, o último país do hemisfério ocidental a abolir a escravidão, mais de 20 anos de ditadura, ele sempre foi conservador. Acreditar numa onda conservadora seria acreditar que este país já foi progressista, e este é um país conservador, fundado dos sangues negros e indígenas, um país de uma democracia recente, mas uma não democracia, praticamente.

 

Eu sinto que esse retrocesso é uma maneira de barrar os avanços que existiram nos últimos tempos, aliado a todo um discurso da mídia hegemônica. O que a gente vive hoje no Brasil é a falência total das instituições. Foi uma junção dos poderes políticos e midiáticos do país para barrar esses avanços da população brasileira.

 

A população está reagindo violentamente porque em um país gigante como o nosso, que tem um projeto educacional falido e alienante, existe uma mercantilização da educação, em que só tem acesso à boa educação quem pode pagar. As pessoas lutam para sobreviver e em São Paulo levam 3 horas pra chegar no trabalho e 3 horas pra voltar para casa. Informam-se basicamente pela mídia hegemônica e pelas redes sociais, e sequer conseguem refletir sobre o que está acontecendo no país. As pessoas não têm o mínimo de razoabilidade, você até tenta dialogar com elas, mas não adianta, não interessa o que a gente diga, estamos num momento em que as pessoas não querem refletir sobre fatos históricos e sobre argumentos racionais. Fake news distribuídas pelo WhatsApp estão sobretudo pegando a questão moral. A produção de fake news está num nível insano tão grande no Brasil que as pessoas repassam informações sem nem saber se são verdadeiras ou não. Por mais que você apresente detalhes e provas, elas continuam acreditando nas fake news. 

 

MENSAGEM PARA AS LEITORAS

 

Peço às leitoras que se interessem pelo que está acontecendo. Muitas de nós ainda não temos voz, muitas de nós ainda não temos sequer a oportunidade de entender o que está acontecendo. É importante falar para o mundo o que estamos vivendo no Brasil.

Acho importante a gente se empoderar, entender o que está acontecendo e tentar criar redes de solidariedade. Acho que é isso que vai nos salvar – criar redes para apoiar umas as outras. Podemos criar estratégias em que possamos contribuir umas com as outras. Essa é uma lição das minhas ancestrais, que por mais que estivessem passando por momentos difíceis resistiram com a ajuda dessas redes. Vamos criar aqui uma roda de capoeira para que consigamos nos fortalecer.