Adriana Chiari Magazine

View Original

A nova mulher indígena

A nova mulher indígena

Valnei Nunes


 Fotógrafa, pesquisadora, professora, cantora, poetisa, atriz, historiadora, escritora, esposa, mãe, ativista dos direitos humanos e a primeira mestra de seu povo. A talentosa índia Marcia Wayna, 39, tem muito a nos ensinar, e a sua consciência sobre a floresta e os povos indígenas nos faz acreditar que mundo é e poderia ser muito melhor. 


 Marcia nasceu na aldeia Belém do Solimões, do povo Tikuna, no Alto Solimões Amazonas. Aos 9 anos se mudou para São Paulo, diz que “aprendeu muito vendo a avó lutar com firmeza” e que a avó “sempre acolhia indígenas que vinham para estudar, e isso me motivava a começar a pensar em militância e afirmação”.  Ela teve uma história cheia de mudanças e escolhas que a levou a um profundo conhecimento do seu povo e suas raízes, e também do mundo fora das aldeias. Marcia, que também viveu num convento de freiras, vem de um povo que descende dos incas, e desconstrói ela mesma o velho conceito de “índios selvagens, pelados sem cultura ou identidade”. A índia, que hoje mora no 

Pará, descreve os índios da aldeia como “um povo que não andava nu. Plantavam algodão e produziam suas vestimentas. As mulheres casadas usavam longas mantas e as mais jovens saias mais curtas. Descobriram o látex da seringueira e com a seiva faziam utensílios usados no dia a dia, incluindo a bota para homens e mulheres”. 


Marcia diz que em relação a sua arte faz um trabalho descolonial, usando da arte em geral. “Sou atriz também e isso me faz ver como a arte da cidade, se bem usada, pode nos servir como ferramenta de resistência e educação. O maior entrave que vejo nessa luta onde temos a arte como parceira são as oportunidades de mostrar o que temos e o que sabemos. As mulheres indígenas buscam a cidade para estudar e assim poder lutar mais por seus direitos, o que é coletivo, como mencionei, é educação, cultura, saúde, etc. Eu mesma estudei na cidade e sempre estou nas aldeias contribuindo e aprendendo também”. 


Marcia é um símbolo de resistência de inserção de trocas de culturas dentro de um país que promove a desterritorialização indígena. Ela conta “que o seu povo organizado em sua forma política conseguia fazer aliança com outros povos e juntos liderar seus territórios, naquela época não existiam fronteiras nem divisão territorial. Era uma extensa área de aldeia. Onde terminava um povo começava outro. Quem sabe um dia os políticos do Brasil aprendem com os indígenas? Eu tenho fé que sim. Nessa crise sofremos com mais problemas. Engavetam projetos que visam à salvaguarda de nossas terras e buscam nos expulsar de territórios que são visados. Há um descaso geral”. 


 A professora revela que “na aldeia a mulher indígena busca adentrar mais o universo do cacicado, ser liderança, ter voz nas decisões, etc. Elas estão na literatura, música, fazendo cinema sobre seu povo. Abre-se um novo cenário onde a mulher não é só a dona de casa, mas sim liderança de seu povo. Estamos produzindo moda também, arte com elementos da natureza, vendendo para buscar renda para a aldeia. Percebo que crescem cada vez mais a força e a garra das mulheres dentro e fora da aldeia, num movimento de resistência cultural. Isso marca um novo tempo”. Marcia foi muito criticada por recusar a candidatura de deputada estadual e acredita que sua bandeira de luta política é a música, a literatura, a fotografia, que “a política a gente faz no cotidiano, sem politicagem”. Marcia lamenta a morte da vereadora Marielle Franco, critica o assassinato “como uma brutal violência contra a mulher. Somos vítimas da violência. A mulher indígena também sofreu e sofre com a violência fora da aldeia. Só o preconceito já é uma forma de violência. Nas aldeias as mulheres são violentadas sexualmente por não serem indígenas, com o objetivo de expulsar o povo de suas terras. Temos assassinatos também nas aldeias. Enfim, a mulher sempre lutou e lutará contra a violência dentro e fora do lar. 


Marielle infelizmente foi calada pela violência da cidade, da política e chocou o país”.  E para falar sobre o assunto, Marcia Wayna fez um poema que neste ano foi publicado em uma antologia lançada no mês de julho, no Rio de Janeiro, em homenagem a Marielle Franco:


 “Silenciaram uma voz,

Entristeceram um sorriso,

Mas a força da alma feminina

A coragem da afirmação,

Tua presença na sociedade,

Lembrado como ato de coragem

Marcado pra prosperidade.”


A índia do povo Tikuna acredita que hoje “o nosso principal embate é a luta pela manutenção dos saberes ancestrais, pelo território físico que são as aldeias, pela saúde, pela educação que é nosso direito ter dentro e fora da aldeia. Lutamos por nossos direitos, queremos respeito como pessoas, ser humano que somos. Não estamos mais no século 16, no entanto sempre somos vistos como exóticos ou folclóricos. Somos indígenas, somos povo, somos nação e temos sabedoria que vem da mata, rios e terra. Temos um sagrado. Lutamos para que a cidade não nos faça dizimar, resistimos à dizimação todos os dias, pois ela se arrasta desde o século16, quando já nos faziam sofrer. Lutamos para que as religiões que vêm da cidade não matem em nós a crença em nossas ervas, em nossa mística indígena, e não matem o que é principal, a cultura e identidade presentes nos rituais, principalmente na memória do lugar”.



 Academia, história e resistência  


Marcia foi para Manaus e concluiu o Mestrado em Geografia na UFAM. No mestrado buscou estudar seu povo Omágua/Kambeba, sua cultura, identidade, desterritorialização e reterritorialização, num processo de resistência a tudo que o aterrorizava naquela época e atualmente. Buscou o conhecimento profundo sobre a história do seu povo, rituais, forma de vestimenta, modo de vida, culinária, danças, canto, relação de parentesco, etc. Depois focou na aldeia Tururucari Uka (A casa de Tururucari, em português). “Nessa aldeia Kambeba tratei das lutas e foi possível traçar um panorama das migrações do povo Kambeba. As invasões de não indígenas que a aldeia enfrentou no próprio território. Derrubavam as casas e árvores na intenção de invadir.”


Marcia publicou seu primeiro livro em 2013 por conta própria, vendeu a casa e usou parte do dinheiro na época. Depois, a PUC, Pontifícia Universidade Católica, doou a ela 200 exemplares do novo livro de poesias, “O Lugar do Saber”, que será lançado em outubro deste ano, num evento chamado “Amazônia”, na PUC de Porto Alegre, Rio Grande do Sul.


 Marcia trabalha, realiza palestras, aulas, consegue gravar músicas em estúdio, faz composições em tupi e em português. Ainda tem na fotografia seu maior trabalho de militância. A índia expõe em escolas e às vezes até financia a própria exposição. Ela diz que “a gente segue acreditando numa voz feminina, num pensamento educacional de descolonização, vendo nas crianças o futuro do amanhã. Para elas componho e escrevo, para terem registro de sua história e o que contar”.


Território, um lar para viver


Sobre o tema território e demarcação de terras indígenas, Marcia acredita que “tudo o que buscamos manter nas aldeias é pensando na cultura que envolve a identidade que se imprime num determinado território. Dentro do território buscamos fazer territorialidade, ao passo que mantemos a cultura viva, damos uma identidade cultural ao lugar. Então, sem território não se pode vivenciar nossas territorialidades, que também são memoriais e simbólicas. Quando falamos ‘demarcação já’, queremos assegurar nosso direito e de nossas crianças a um lugar onde possam crescer vivendo sua identidade de nação”.


A Mulher Brasileira Indígena e Não Indígena


Marcia faz uma comparação da mulher brasileira indígena com a mulher brasileira não indígena, afirmando que “há uma grande diferença. Começo falando que aldeia e cidade são universos diferentes. Na aldeia os costumes são outros, falo da mulher que é mãe e que faz roça, que cedo vai pra beira do rio lavar roupa, dar banho nos filhos. Que é cacica, ou seja, aquela que cuida da aldeia ao mesmo tempo que cuida do lar. Da mulher que é mantenedora dos saberes ancestrais e que tem a missão de transmitir aos mais jovens. Da mulher que respeita os rituais de transição da aldeia mesmo que ela tenha um pé na cidade. Da mulher que sabe andar na aldeia e na cidade. Que luta por seus direitos e do coletivo. Na cidade vivemos em constante pressa. Não se tem tempo pra ouvir o rio, os pássaros, ver uma árvore que tombou com vento, porque a pressa não nos deixa perceber as transformações paisagísticas que acontecem a cada minuto ao nosso redor. Andamos rápido, comemos rápido, pra tudo tem que ter dinheiro, senão as coisas não fluem. Na aldeia se um não tem o outro ajuda. De fome ninguém passa. Na cidade se vive sempre com medo, trancados em grades; na aldeia se vive a liberdade de andar pela aldeia e deixar a casa aberta. Enfim, culturalmente a mulher da cidade não conseguiria ter uma vida na aldeia. Penso eu. Assim como é difícil para uma indígena deixar a aldeia e viver na cidade. Ela acostuma, mas leva tempo. Mas percebo que hoje a mulher na cidade busca mais conhecer sua ancestralidade indígena. Saber se tem um parente que foi indígena, escuto muito isso em minhas palestras. Buscam conhecer mais nossa cultura e apoiam. Mas ainda temos muito a somar”.


Marcia comenta que o feminismo está presente na aldeia e dentro da cultura indígena, mas as mulheres nas aldeias não percebem o feminismo. “A partir do momento em que elas entenderem o feminismo, vão perceber que também se produz o feminismo nas aldeias no momento em que você defende seu território e assume seus cargos de liderança, e também quando você luta contra um madeiro que invade as suas terras, ou seja, no momento em que se resiste aos enfrentamentos. Tudo faz parte desse movimento que está na gente.”


Que milhares de Marcias, Marielles e também Marias inspirem outras mulheres de todas as religiões, etnias, cores a se conscientizarem e lutarem pelos seus direitos e valores ecológicos, num planeta ainda bastante violentado e violado pelos os homens. Que a lei das mulheres conjure todo o saber e eleve a nossa sociedade ao mais pleno direito comum entre todos os humanos que habitam este planeta cheio de terra, água e vida.



MSG da MULHER INDÍGENA PARA AS LEITORAS ADRIANA CHIARI


 A mensagem que deixo para as leitoras é que busquemos conhecer e valorizar nosso sagrado, nossa cultura e identidade. Cada pessoa tem sua história, temos que procurar conhecer nossa história, valorizando nossa memória, o que é fundamental para nossa formação como pessoas. Que possamos ler mais e conhecer mais sobre nossos povos indígenas, que contribuíram para a formação do povo brasileiro. Que aprendamos a pensar num mundo mais livre de poluição, onde a consciência ambiental prevaleça. Que possamos, enfim, buscar renovar nossas energias nas árvores, pois a mata tem sua mística, suas energias, e numa troca saímos leves e prontas para uma nova caminhada. Que possamos não viver com tanta pressa e olhar mais as flores e sentir o perfume delas. Que possamos aprender a ouvir a voz do silêncio. 

  

Marcia Wayna