Adriana Chiari Magazine

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COMO IVONETE ROSA ME SALVOU DO SUICÍDIO

DE COMO IVONETE ROSA ME SALVOU DO SUICÍDIO

(CONTO)

 

            Me chamo Claudinei e gosto de leitura. Faz alguns meses vi uns textos da Ivonete Rosa na internet e fiquei muito feliz porque batem com o que eu acredito. Ela é bombeira e, como escritora, apaga os incêndios do coração da gente. Tenho 40 anos e sou separado, mas, graças aos artigos da Ivonete, estou inteiro.

            Não culpo minha ex-mulher. Ela era agressiva, mas teve uma vida muito complicada. Se eu for contar a vida dela, não conto a minha, e hoje aprendi que sou minha prioridade, então darei voz à minha história, mesmo quando falar dela, a M. Desde o início ela descontava a raiva do mundo e de outros homens em mim. Eu percebia isso, mas comecei a namorar porque a amava muito e queria ajudar. Se eu tivesse sido mais atento, teria sido um bom amigo primeiro por mais tempo e, se rolasse algo mais, maravilha. Mas quis logo ficar com ela. Como falei, por amor e para ajudar.

            Nem sempre fiquei calmo quando ela se enfezava. Também aprendi que isso é responsabilidade minha. Primeiro porque não devo entrar na mesma energia de confusão e gritos. Segundo que (e eu sentia, nem precisava o terapeuta dizer ou algum texto da Ivonete) M. provocava situações difíceis para depois dizer “Eu sabia, é sempre assim, todos me maltratam e me abandonam...”. Mas quem me abandonou foi ela, fiquei mal e fui melhorando aos poucos. Pensei em mil formas de me matar. Os textos da Ivonete me ajudaram a ficar vivo.

            M. tinha baixa auto-estima e, nervosa, dizia “Ah, mas eu não tenho Ensino Médio como você...”. Ela não terminou o Fundamental. E, se isso fosse fundamental pra mim, eu não teria me casado com ela. Uma vez eu perdi a paciência e a xinguei de nome feio porque ela disse que eu fazia trabalho voluntário na Paróquia pra aparecer. Fiquei muito puto, mas isso não justifica a grosseria, hoje, mais do que nunca, acredito nisso. Outra vez eu estava na cama, deitado, sem óculos, e ela avançou sobre mim. Cobri a cara com os braços e empurrei instintivamente, com medo, ela caiu de bunda e disse que eu tinha empurrado de propósito, que batia nela. Num sábado gritou comigo que ninguém ia para as gincanas da Paróquia para me ver e eu disse que ainda bem que isso era verdade. Começou a beber e a me ignorar, passei por ela e bati meu ombro direito no esquerdo dela para ver se prestava atenção em mim. Não devia ter feito isso, na hora percebi como eu também estava ficando doente e agressivo. Mas a amava e queria ajudar.

            Falei para M. pra irmos até o CVV ou o CAPS pedir ajuda, ela não quis, e ficamos 05 anos juntos e houve bons momentos. Ela tem uma filha de 11 anos (estou me acostumando a dizer que a filha é só dela) do primeiro casamento. A menina, P., me chamava de pai desde o início do namoro com sua mãe, quando ela estava com 06 anos. Andava mentindo para chamar a atenção de M., sempre distante, em virtude da depressão e da irritação, cada vez mais fechada no quarto. Tinha medo das mentiras que P. pudesse inventar. Às vezes perdi a paciência com ela e dei uns berros ou uns tapas, isso é verdade e é errado. Conversei com ela e expliquei que quando o adulto perde a paciência com a criança a responsabilidade é do adulto. A mãe a surrava constantemente e a chamava de “burra” e “pamonha”. Eu não queria fazer igual. M. admitia que P. tem traços de autismo, sugeri levar ao CAPS Infantil, mas ela disse que não precisava.

            M. tinha outra pessoa. Mas eu a amava e queria ajudar. Eu sei que tinha porque na página oferecendo faxina que ela fez no Facebook, apagou o status “casada” porque alguém falou que isso atrapalhava contratações. Parou de usar aliança e disse que era para não perder, que o dedo era fino. Uma vez eu ouvi M. falando com uma tia de Manaus hospedada na casa de uma irmã, na cidade em que morávamos, que “sou muito grata a ele porque quando precisei foi ele que me acolheu.”

            Um dia disse que ia embora, precisava ficar sozinha e reorganizar a vida. Pediu desculpas porque cada vez menos conversava comigo ou transava. Admitiu que me tratava como um móvel (na verdade, um criado-mudo: ai de mim se desse alguma opinião, se discordasse de algo). Foi depois de um dia em que P. mentiu que eu briguei com ela e M. fez mil acusações. A menina veio se despedir de mim antes de ir para a cama, mas eu estava tão abalado, queria ficar sozinho um pouco, em silêncio, dei um sorriso, um boa-noite, mas não a chamei para o beijo costumeiro. M. quebrou a casa e disse para P. que eu era um pai de merda e ia encontrar algo melhor para elas, que tudo ia acabar. Respirei e fui dormir, rezei um pouco.  Nunca falei mal de M. para P. Aliás, nunca falei mal de M. pra ninguém. Pensei em dar uma caminhada, em dormir na rua, mas no outro dia precisava levar P. à escola antes de trabalhar, depois voltar e cuidar da casa, da comida, de tudo. M. ficava o tempo todo com o celular na mão, falando com o namorado virtual. Claro, era cômodo, sem problemas. O amor compartilhado dura nas dificuldades, até cresce porque existe o companheirismo. Meu amor por ela nunca diminuiu. Criado-mudo não ama: eu ainda era um homem. Amava e queria ajudar.

            O combinado foi ela ir para a capital ver um serviço. Voltaria em 40 dias. Resolveu ficar 04 meses, mas afiançou que voltava. A tia de Manaus, hospedada na casa de uma irmã, como eu falei, vez ou outra pegaria P. comigo e levaria para passar uns dias com ela e a outra tia de segundo grau. Numa sexta-feira pegou a menina, mas não foi para a irmã: tomou um ônibus com P. e partiu para Manaus. Descobri três dias depois por uma gravação da própria M., no WhatsApp, que também em avisou que não voltaria mais.

            Entrei em depressão profunda. Não podia mais continuar na casa alugada. Pedi demissão da oficina mecânica onde trabalhei 10 anos e avisei para o proprietário da casa que a entregaria dali a um mês. Tive de arcar com muitas reformas para reverter mudanças feitas conforme o gosto de M, vidros quebrados por P., em brincadeiras, etc. E também arrumar famílias para os cachorros e gatos que recolhíamos da rua, o que era uma dor redobrada, por ter de doar os bichinhos e por não encontrar novas casas com a facilidade esperada. Separei as coisas dela (M. protestou pelo celular que eu jogava tudo na rua, como em outros relacionamentos, mas expliquei que estava de mudança e aproveitei pedir ajuda para as despesas de reformas da casa etc., porém ela não respondeu), pedi para a tia que morava na mesma cidade buscar, ela disse que não podia, então vendi o fogão e a geladeira para pagar o frete e enviar tudo para a tia e passei a comer pão e frios. Um mecânico, colega de trabalho, me emprestou um micro-ondas antigo e eu fazia miojo. Uma vez por semana comia no self-service. Esse amigo mecânico às vezes me levava sopa ou risoto. Daí eu me mudei pra cá. Vim de ônibus. Precisava economizar o último salário, recebi algum acréscimo, mas estava descoberto, sem seguro-desemprego ou FGTS, o patrão não fez acordo. Tenho feito bicos na oficina de um parente.

            Duas semanas antes de me mudar, entre um plano suicida e outro, descobri pelo celular os textos da Ivonete, dois em especial. “Seu coração está sangrando? Não use ninguém como curativo, por favor.”. Eu acredito nisso, hoje não tenho condições nem vontade de ficar com alguém. Preciso me reencontrar primeiro. Nem todo mundo consegue. M., por exemplo (e não estou julgando, apenas entendendo o jeito de cada um), disse que precisava ficar sozinha, mas arrumou logo alguém (na verdade, já estava). Quando nos conhecemos e nos tornamos amigos, ela disse que nunca mais ficaria com ninguém, eu disse que isso era bobagem, que uma hora o amor surgiria. Mas ela falou da boca pra fora que ia fazer voto de castidade porque, logo que se separou do pai biológico de P., enviava nudes para um amigo em comum, sugerindo que ficassem juntos ou namorassem. Ele não quis. Daí nos conhecemos e foi só amizade. Com o tempo, ela me deu uma chance e, mais, se deu uma oportunidade de amar novamente. Voto de castidade não, mas talvez devesse ter ficado sozinha de verdade um tempo. Mas não posso falar por ela. Onde moro agora, sou bastante paquerado, porém não é o momento, até fisicamente preciso de sossego. Espero mesmo que M. se encontre, ouça sua voz interior. Ela sempre fugiu dessa voz, por isso o rádio, a tevê, o celular sempre ligados. Se ela não quiser se encontrar, se não quiser ser ajudada, ninguém pode fazer nada. Eu sei, eu sei: não posso falar por ela.

            O outro texto bacana da Ivonete é “Por que tanta urgência em assumir um novo relacionamento?”. Doeu muito ver as fotos de M. com o novo namorado no Instagram. Não foi ciúme, quis ir embora, seja feliz, só desejo o melhor. Doeu foi a maneira de ter me abandonado e tirado minha filha (“filha dela”, estou aprendendo a dizer). Mas doeu também ver nas fotos tudo o que eu queria ter feito com ela, tudo que esteve ali à disposição por 05 anos e ela preferiu a ilusão do fácil, do amor virtual e sem problemas (agora, no dia a dia, certamente os problemas vão brotar, porém nem devo pensar nisso, e sim cuidar de mim). Em casa, sem carinho, sem conversa, sem sexo, eu tentava respeitar o tempo dela. Hoje posta fotos sensuais com o namorado, com legendas sobre o que faz com ele e poderíamos ter feito juntos. Se é pra provocar, não sei. Então, parei de seguir e me perguntei por que fiquei 05 anos nessa relação. Por amar e querer ajudar, como já falei. Mas a que preço para mim e mesmo para ela? M. sempre esbravejou que não deve satisfações a ninguém, só que posta esse monte de fotos para, no fundo, receber aprovação de todo mundo. Isso é inconsciente, estou aprendendo. E é um processo dela, não o meu. A privacidade se perde quando é postada na internet e M. não se importa com o que sinto, esse momento de reajuste. Ela precisa se reafirmar para os outros, embora ache que é para si mesma. As fotos são para provar uma sensualidade que ela realmente tem, mas ela não é só isso, ou melhor, ela é isso e muito mais. O que eu posso fazer? Cuidar de mim e fazer diferente. Tomo cuidado para não machucá-la mais do que a vida já fez. Ou ela mesma, contra si.

            Também parei de procurar M. (a Ivonete trata disso em outros textos). Se mal falava comigo quando casados ou durante a separação, se me tirou a menina, minha filha (sim, “minha filha” também, que criei por 05 anos), não seria agora que me responderia. Mas tentei. Gravei um áudio pelo WhatsApp. Não ouviu e era urgente. Celular não atende. Fiz exame de rotina e deu positivo para HIV. Refiz e o resultado foi o mesmo. M. deve ter saído com alguém quando estávamos juntos, pois eu não saí e nem tive situação em que pudesse contrair o vírus. Não a julgo, nem sei se o rapaz, nesse tempo, veio até a cidade onde morávamos (“sou muito grata a ele porque quando precisei foi ele que me acolheu.”), ou foi outra pessoa. Quero que fique bem e saudável e brilhe muito, sem achar que, para isso, precisa apagar o brilho de quem a ama. Mas ela não ouve o áudio e, para meu bem, não devo toda hora tentar gravar. O endereço, não tenho.

Sei que, se um dia eu falar com a Ivonete, ela vai dizer que não me salvou de nada, que eu mesmo fui me salvando aos poucos, que os textos podem ter ajudado e ela se sente realizada. Rezo toda noite pra M. ser feliz, sinto muita falta da P. (poderia estar comigo, minha filha), mas não voltaria pra M. (por mais que amasse e quisesse ajudar), não daria certo e não vou mais me iludir. Estou me desapegando de tudo o que foi negativo, e mesmo positivo, investindo na gratidão. Queria também me desapegar do vírus. Como hoje não é possível, vou me tratando também dessa situação, dessa herança, pra não virar outra dor. Talvez um dia a Ivonete escreva sobre isso também.

 

Com dezenas de livros publicados (alguns com traduções para diversos idiomas, outros com premiações, indicações e certificações como PNLD e PNBE), Ademir Barbosa Júnior (Dermes) também publicou 36 revistas especializadas, com temáticas diversas, publicadas no Brasil e distribuídas também em Portugal. É Mestre em Literatura Brasileira pela USP, onde também se graduou em Letras, Doutor Honoris Causa pelo MCNG-IEG (SP) pela FEBACLA (RJ), Pós-graduado em Ciências da Religião pelo Instituto Prominas e titular da cadeira 62 da Academia Independente de Letras.

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