Adriana Chiari Magazine

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Conto Saúde Mental

SAÚDE MENTAL

(CONTO)

 

            Eu já pensei em me matar algumas vezes. Duas, pelo menos. Quando era diarista na casa do comendador e recolhia os cocos caídos no jardim. Pensava muito em me atirar debaixo de um carro, mas desisti depois de, numa manhã, pegar um coco verde e, por cima do muro, jogar debaixo da roda de um caminhão de lixo. Da outra vez eu faxinava o apartamento de um dentista e pensei em saltar do sétimo andar, voar sem asas, daí o interfone tocou e o moço da água veio entregar dois galões de dez litros porque seria o chá de bebê do primeiro filho do dentista e da mulher dele, que não era dentista, como eu pensava que fosse.

            Hoje não penso em me matar, mas parei os remédios. Parei. Tudo ficava pastoso, parecia que eu pisava num queijo mineiro, minha voz não saía direito e eu tinha muito sono. Sem os remédios fico mais esperta. Às vezes não sei bem se sou eu mesma, Mirtes. Mas sei que não quero ir para o asilo, Mirtes desdentada, mordendo pão com a gengiva e babando gosma de café preto, pão duro e margarina sem sal. Sem os remédios consigo até ajudar meu filho com a tabuada, Marquinhos, 11 anos, magro como o pai.

            Às vezes acho que sou homem. Um marinheiro barbudo de uns quarenta anos, aportado aqui, que gosta de beber rum, fumar cachimbo e espera passar os 30 dias de tempestade para poder partir. Os 30 dias demoram uma vida e daí eu viro Mirtes de novo e esqueço o nome das pessoas, até do Marquinhos. Pode parecer confuso, mas é melhor sem remédio, dá pra viver outras vidas e entender tabuada.

            Tenho vontade de jogar sinuca, só que aqui não tem aqueles bares de sinuca e boliche onde as mulheres entram. Eu poderia entrar como marinheiro, já pensou? Ninguém ia perceber. O marinheiro anda duro, impõe respeito e o Marquinhos podia ir comigo. Não, não podia porque é de menor. O Marquinhos gosta de ler revista da Seicho-No-Ie e de imagem de São João Bosco, apesar de o santo dizer que quem bate punheta vai pro inferno e o Marquinhos já sabe o que é punheta. Em inferno ele não acredita. Eu não sei. Inferno é a casa da minha tia na estância de águas minerais porque ela nunca falou bem de ninguém nessa vida.

            Outra vontade? É um sonho. Matar a velha da recepção do INSS. Ela não precisava existir, ainda mais que hoje tudo é pelo computador. Eu acho que a velha do INSS nunca vai se aposentar e isso é um absurdo. Daí fico com pena dela e a vontade de matar passa. Meu marido eu não tenho vontade de matar. Ele ronca muito, mas trabalha direito, enche o saco pra eu tomar os remédios e parar de fumar. Liga o rádio pra mim quando estou meio sonâmbula e me põe na poltrona vermelha, coberta por um lençolzinho pra não esquentar demais minhas pernas. Corta minhas unhas e tem medo que eu tenha que amputar as pernas por causa do cigarro. Daí eu dou risada e digo que se acontecer as pernas não vão esquentar no sofá. Meu pai não lavava louça nem banheiro, muito menos cortava as unhas da minha mãe. Mas brincava com os filhos no quintal e sabia fazer galinha cabidela.

            Eu nunca pensei ser outra pessoa além do marinheiro. O marinheiro eu acho sossegado porque ele não viaja, está esperando a hora, que não vem. Parece muito comigo. É o remédio que atrapalha a gente, os médicos deviam saber. Qual o problema de eu ser o marinheiro? Aliás, nunca eu contei pra ninguém, nem pro Marquinhos, que eu posso ser marinheiro quando eu quiser. Talvez, se a cidade inundar, eu vire mesmo marinheiro e salve todo mundo, até a velha da recepção do INSS.

            Cheiro de gás me incomoda. Valete de espadas também. Sopa de letrinhas porque me embaralha a vista e não sou obrigada a ler comida. Remédio? Já falei que não gosto. Gelatina solta o intestino. Marquinhos não falta à escola. Não gosto de religião por causa do dízimo. O prefeito crismou meu marido, mas finge que não se conhecem. Gosto de fazer artesanato e ajudo a psicóloga na limpeza quando os outros vão embora. E sempre vão, não tem jeito.

            Acho que o marinheiro vai morrer antes de mim, eu vou depois. É isso que eu acho. Quando o marinheiro morrer, eu sei que minha vez vai chegar logo.  Daí eu vou fingir que não sei, pra ninguém me dar remédio.  O Marquinhos e o pai vão segurar o caixão. Os outros dois não sei quem vai ser. Mas pode ser mulher, não é? Então vou pedir pra convidarem a psicóloga e a velha da recepção do INSS. Você entende por que não mato ninguém, nem a mim mesma? É que não consigo ter raiva. Eu não gosto é dos remédios.

 

(Texto retirado de livro ainda inédito)

 

Com dezenas de livros publicados (alguns com traduções para diversos idiomas, outros com premiações, indicações e certificações como PNLD e PNBE), Ademir Barbosa Júnior (Dermes) também publicou 36 revistas especializadas, com temáticas diversas, publicadas no Brasil e distribuídas também em Portugal. É Mestre em Literatura Brasileira pela USP, onde também se graduou em Letras, Doutor Honoris Causa pelo MCNG-IEG (SP) pela FEBACLA (RJ), Pós-graduado em Ciências da Religião pelo Instituto Prominas e titular da cadeira 62 da Academia Independente de Letras.

 

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