Por que as pessoas estão tomando menos vacina

Por que as pessoas estão tomando menos vacina

As baixas taxas de vacinação contribuem para que doenças sob controle voltem a circular.

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Entenda as causas por trás disso e o que fazer

Foi durante uma conversa com uma ordenhadora de vacas que o médico britânico Edward Jenner (1749-1823) teve a brilhante ideia de criar uma vacina contra a varíola, doença marcada por mal-estar e erupções na pele. A camponesa dissera a ele que, apesar de contagiosa, jamais pegaria a moléstia porque já tinha contraído sua versão bovina. Intrigado, o médico resolveu testar a teoria da moça. Em maio de 1796, inoculou o vírus da varíola bovina em um garoto de 8 anos, que logo apresentou sintomas brandos. Dois meses depois, com o menino já curado, o infectou novamente com o vírus da varíola humana. E, para sua surpresa, ele não adoeceu. Logo, Jenner constatou que a exposição à varíola bovina, de baixa gravidade, tinha imunizado o garoto contra o tipo mais letal da doença.

Nascia, aí, o conceito de vacina, que, dois séculos depois, permitiria que a mesma varíola fosse erradicada da face da Terra. O último caso registrado ocorreu em 1977, na Somália. “Até poucas décadas atrás, doenças como pólio, sarampo e difteria eram ameaçadoras. Quando não matavam, deixavam sequelas. Graças às vacinas, a expectativa de vida da população aumentou em 30 anos”, explica o médico Renato Kfouri, presidente do Departamento de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria.

Tem vírus que até podia tomar o caminho da varíola, mas voltou das sombras. É o caso do sarampo. Em março, o Brasil perdeu o status de país livre da doença, conferido pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) em 2016.

De fevereiro de 2018 a fevereiro de 2019, registramos 10 374 casos, com 12 mortes. E o que está por trás disso? “A queda nos índices de vacinação provoca o retorno de doenças já eliminadas ou controladas”, responde a epidemiologista Carla Domingues, coordenadora do Programa Nacional de Imunização. “Há uma percepção equivocada de que algumas vacinas já não são mais necessárias”, observa. Cenário propício para vírus e bactérias reemergirem, espalhando doenças que (só) pareciam coisa do passado.

A vacina tríplice viral, que nos defende de sarampo, caxumba e rubéola, é uma das sete destinadas a crianças que estão com a cobertura abaixo do ideal, segundo dados do Ministério da Saúde. Entre os imunizantes infantis, somente a BCG, que combate a tuberculose, bateu a meta proposta — especialistas acreditam que ela obteve êxito porque tem dose única e é aplicada na maternidade. Entre as vacinas que não chegaram lá estão as versões para poliomielite, hepatite A e pneumonia.

Por que as pessoas estão se vacinando menos

São muitas as hipóteses que ajudam a entender esse preocupante declínio. A primeira delas soa até irônica: as vacinas são vítimas de seu próprio sucesso.

“Muitos pais nunca ouviram falar de pólio, rubéola e difteria. Por essa razão, não levam os filhos para se proteger”, nota o pediatra Juarez Cunha, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (Sbim). Além disso, nosso calendário é tão completo — ao todo, são 19 imunizantes, que previnem 28 doenças — que, só no primeiro ano de vida da criança, os pais são obrigados a ir ao posto nove vezes. E tem quem reclame disso. “Alguns se esquecem ou deixam para depois”, relata Cunha.

Até mudanças no mercado de trabalho têm um dedo nessa história. “Cada vez mais mulheres passaram a trabalhar fora. Como os postos de saúde só funcionam de segunda a sexta, das 8 às 17 horas, nem elas nem os pais têm tempo de imunizar os filhos”, aponta Cristina Albuquerque, chefe de Saúde e Desenvolvimento Infantil do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no Brasil.

A crise econômica também bagunçou as coisas. “Muitas famílias não têm condições de levar os pequenos até o posto”, conta Cristina.

Falta de confiança e informação

Uma pesquisa da Faculdade São Leopoldo Mandic, em Campinas (SP), lançou luz sobre as crenças e percepções de parte da população em relação à vacinação infantil. De 352 pessoas entrevistadas, 23% relataram hesitação e 7% recusa em imunizar os filhos. Entre as que demonstraram hesitação, 41% alegaram falta de confiança nas vacinas, 25% duvidaram de sua segurança ou eficácia e 24% admitiram preocupação com eventos adversos, como dor, vermelhidão e inchaço.

Ou seja, uma fração dos cidadãos, sob influência de argumentos errôneos ou fake news, está a um passo de negligenciar as vacinas para seus entes mais queridos. É problema pra família… e pra sociedade toda.

“Quando uma pessoa é imunizada, protege, de forma indireta, as que não foram. É como se formasse um escudo de proteção em torno das que, por motivo de doença ou uso de medicamentos, não podem se vacinar”, esclarece a pediatra Eliane Matos, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz/Biomanguinhos), no Rio de Janeiro.

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Doenças mais sazonais e que são evitadas por meio de vacinas também podem surfar na onda do desconhecimento e do medo das picadas. Em fevereiro, a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou para o risco de uma “terceira onda” de febre amarela no país. Entre dezembro de 2018 e janeiro de 2019, o país registrou 36 casos, com oito mortes.

“Os recentes surtos revelam que certas doenças podem voltar a qualquer momento. Basta aparecerem pessoas infectadas em uma região com baixa cobertura vacinal”, alerta a microbiologista Daniela Rosa, da Sociedade Brasileira de Imunologia.

A gripe, que reaparece anualmente no período de outono e inverno, é outra encrenca que se aproveita dessa corrente de “vacina pra quê?”. Embora o índice nacional de imunização tenha sido atingido, alguns grupos de risco — pessoas com doenças crônicas, crianças e gestantes — e estados ficaram com taxas abaixo do previsto.

Convém lembrar que a gripe pode levar a complicações graves, potencialmente fatais.

Movimento antivacina: um problema mundial

As baixas na vacinação, é preciso dizer, não são um desafio exclusivo do Brasil — país que ostenta um dos programas públicos mais bem-sucedidos do globo. Ao redor do mundo, os episódios de sarampo, por exemplo, cresceram 300% em 2019.

Diferentemente do que acontece por aqui, lá fora quem ganha força e voz é o movimento antivacina. Os anti-vaxxers, como são conhecidos, se espalham por Estados Unidos, França, Itália… E ecoam, pelas redes sociais, seu discurso para o Brasil e o resto do planeta.

Em 2017, o político italiano Massimiliano Fedriga, de 38 anos, um desses militantes antivacina, chegou a classificar como “ditatorial” o programa que torna obrigatória a imunização infantil na Itália — entre outras medidas, o governo multa os pais que não cumprem a lei e proíbe crianças não imunizadas de frequentar creches ou jardins de infância. Em março deste ano, Fedriga caiu doente e foi levado às pressas para um hospital.

Por ironia do destino, foi diagnosticado com catapora! Depois de cinco dias internado, já recuperado do susto, declarou ter mudado de ideia sobre a importância das vacinas. “Hoje em dia, um mito vale mais do que mil evidências”, critica a médica Lessandra Michelin, coordenadora do Comitê de Imunizações da Sociedade Brasileira de Infectologia. “Precisamos reeducar nossa população, reforçando que vacinas salvam vidas.”

A mãe das conspirações contra os imunizantes é obra do médico britânico Andrew Wakefield, que, em 1998, publicou um estudo fraudulento indicando que a vacina tríplice viral podia causar autismo. Movido por interesses escusos, o profissional forjou um elo do qual teve que se retratar tempos depois. O caso foi tão absurdo que Wakefield teve seu registro médico cassado em 2010. “Mesmo assim, o estrago já estava feito”, lamenta a pediatra Bárbara Furtado, gerente médica de vacinas do laboratório GlaxoSmithKline (GSK).

Vinte anos depois, um novo estudo, o mais completo já produzido sobre o tema, reafirma o óbvio: a tríplice viral não aumenta o risco de autismo. A conclusão vem de uma análise robusta do epidemiologista dinamarquês Anders Peter Hviid, que monitorou 657 461 crianças, todas nascidas em seu país entre 1999 e 2010. “A maioria das vacinas apresenta mais benefícios do que riscos. Os pais não devem colocar a vida dos filhos e a de outras crianças em perigo por medo do autismo. Está mais do que provado que autismo é uma condição genética”, diz Hviid.

Ainda assim, a fake news continua a circular por aí — e em má companhia. Pelas redes e grupos de WhatsApp, deparamos com mensagens como “Vacinas podem ser fatais porque seus efeitos colaterais ainda são desconhecidos”, “Vacinas são apenas uma forma de a indústria farmacêutica ganhar dinheiro” ou “Aplicar mais de uma vacina pode sobrecarregar o sistema imunológico da criança”.

É tanta notícia sem cabimento que o Ministério da Saúde elucida algumas em seu portal e disponibiliza um número de WhatsApp — (61) 99289-4640 — para esclarecer outras. “A melhor forma de combater fake news é não compartilhar fake news. Na dúvida, cheque a fonte ou consulte seu médico”, prescreve a infectologista Rosana Richtmann, do Instituto Emílio Ribas, em São Paulo.

Enquanto os gestores italianos não permitem a matrícula de alunos sem a caderneta de vacinação completa e pediatras americanos podem se recusar a atender pais com filhos não imunizados, os especialistas brasileiros sugerem medidas menos drásticas: abertura dos postos em horários alternativos (à noitinha ou nos fins de semana), instalação de pontos de vacinação em parques, clubes e igrejas e realização de mutirões em áreas carentes.

Um levantamento de 2017, encomendado pela GSK, mostra que 46% dos brasileiros relatam nunca ter recebido orientação sobre vacinas de médicos ou enfermeiros. “A ciência precisa dialogar com a população. Ninguém entende o cientifiquês. Precisamos falar a língua do povo”, ressalta a pediatra Isabella Ballalai, da SBIm.

Então informe-se, vacine-se e compartilhe!

Fonte : https://saude.abril.com.br

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