As Mulheres do Sistema

As Mulheres do Sistema

 

Por Alessandro Filizzola

 

Das margens do Rio Amazonas no norte do Brasil vem o exemplo de como a humanização do sistema carcerário, aliada ao empreendedorismo, pode ser poderosa aliada na redução da violência e da criminalidade. Em junho de 2018 tive a oportunidade visitar o Presídio Feminino do Estado do Pará e de conhecer de perto e documentar o premiado trabalho realizado por eles. Trabalho este que hoje é modelo para todo o sistema carcerário do Brasil e vem sendo foco de reportagens não só no Brasil como no mundo. A ideia era fotografar o dia a dia dessas mulheres, tanto das detentas quanto das funcionárias, mas lá encontrei muito mais do que poderia esperar.

 

Bandido bom é bandido morto. Provavelmente você já ouviu esta frase dita por alguém em tom de solução definitiva para a criminalidade. A redução do problema à desumanização do infrator pela negação do seu direito à vida e, por consequência, do direito ao perdão, à dignidade e a qualquer forma de recuperação. Mas e se o bandido em questão for um ente querido? Não que alguém próximo possa se reduzir a tanto. Afinal, isso só acontece com os outros, não é mesmo? Mas aí, neste distante exemplo, talvez você queira então modificar o final da frase mais ou menos assim: bandido bom é bandido morto… desde que ele não seja o seu filho, ou a sua mãe, ou alguém que você ame. Aí talvez você acredite que a recuperação seja possível. E que a recuperação – que não se confunda com impunidade – deva ser promovida durante o encarceramento, para que, ao final da pena, uma pessoa com novas perspectivas, e que tenha pagado por seus crimes, seja então aceita e  recebida mais uma vez no seio na sociedade. Com este pensamento, a Dr.aCarmen Gomes, diretora do presídio, criou a  Coostafe – Cooperativa Social de Arte Feminina Empreendedora, a primeira cooperativa de mulheres encarceradas do Brasil. 

 

Nessa cooperativa as detentas têm a oportunidade de trabalhar com artesanato e gerar renda para si próprias e para as suas famílias. Lá elas aprendem também a resgatar a autoestima e o sentimento de pertencimento à comunidade. Contando com parcerias no setor privado e voluntários, no presídio as detentas também têm acesso à aulas de alfabetização e ensino fundamental, pintura, dança, música, informática e capoeira, só para citar algumas. As vagas estão abertas a todas, a condição para participar é simples: boa vontade e bom comportamento.

 

Essa iniciativa, que parece simples, encontrou – e encontra – diversos desafios. O principal, talvez, seja a mudança de mentalidade de todos os envolvidos, não só das detentas, mas também dos membros de toda a equipe do presídio. Essa transformação é facilmente notada na atmosfera da instituição. Diferentemente da imagem violenta e brutalizada que era de se esperar num presídio de qualquer capital – especialmente em se tratando de um na Amazônia –, o clima é descontraído e cordial. As presas são tratadas pelo nome e têm liberdade para conversar com as pessoas da equipe. Os carcereiros não portam armas e o presídio conta com áreas de beleza e tranquilidade inesperadas, como um bem cuidado jardim que é mantido pelas detentas.

 

Mas não foi sempre assim, no início era diferente, nos conta a Dr.aCarmen. Onde hoje se encontra o jardim, antes era um terreno abandonado que servia como depósito de entulho. A cozinha servia refeições sem qualquer controle de qualidade e as detentas passavam os dias confinadas em suas celas sem qualquer atividade ocupacional, profissionalizante ou mesmo recreativa, como as que o hoje o presídio oferece. Não se acreditava que as coisas poderiam ser diferentes e havia constantes rebeliões. As ameaças vinham de ambas as partes, das detentas para as funcionárias e vice-versa. 

 

Não é que hoje tudo seja perfeito e que as detentas vivam num paraíso. A realidade continua dura para as internas; as pessoas que lá trabalham têm uma função clara a desempenhar e não podem esquecer-se disso. As detentas estão longe de cumprirem suas penas em condições luxuosas e cheiras de mordomia. Não é isso.O presídio enfrenta problemas de recursos e infraestrutura como os que se veem em tantos outros pelo Brasil. O que acontece é que, no final do dia, a convivência pacífica e mais harmoniosa interessa e beneficia todas. A mudança de mentalidade na gestão do sistema faz toda a diferença. Para as detentas, um dia mais leve em suas penas; para as funcionárias, mais um dia de trabalho sem incidentes que se encerra e elas seguem de volta para as suas famílias e vida fora do cárcere.

 

Nas palavras da diretora: “Tudo o que não serve para a sociedade, serve para o crime”. E o problema está justamente na sociedade que rejeita antes mesmo de o crime acontecer. O problema vem na estrutura das famílias desestruturadas em sua essência. A grande maioria das detentas que lá estão não escolheram o seu destino, foram levadas pelas circunstâncias: pela pobreza, pelo sofrimento, pela necessidade e uma sucessão de decisões ruins que, finalmente, as puseram onde estão. E, mesmo para as que tiveram melhores recursos para discernir, e mesmo assim optaram pelo crime, não nos cabe julgar e punir além das suas sentenças. O julgamento já foi feito por um juiz e em nome da sociedade. Durante o tempo de reclusão, espera-se que as detentas se recuperem para que, uma vez libertas outra vez, tenham aprendido com os seus erros, sejam produtivas e aptas a um novo estilo de vida. Mas geralmente não é o que acontece. Abandonadas pela sociedade e brutalizadas pelo sistema, apenas o crime as acolhe. E nele elas se especializam e se reconhecem. Entretanto, o que se vê neste CRF – Centro de Recuperação Feminino – é o que todo centro de detenção deveria prover: uma genuína oportunidade de vida nova após o cárcere.

 

Já há alguns anos vinha acompanhando com entusiasmo o trabalho realizado pela Dr.aCarmen no CRF. Quando finalmente surgiu a oportunidade e  foi formalizado o convite para registrar o empreendedorismo da Coostafe e demais iniciativas de reinclusão social promovidas pelo CRF com o apoio da Susipe – Superintendência do Sistema Penitenciário do Estado do Pará, fiquei particularmente empolgado com a oportunidade de retratar este lado positivo e que nos motiva a ter esperança, não só de que o sistema pode funcionar a favor da população, mas principalmente pela crença na capacidade de recuperação e superação do ser humano. Acredito que trabalhos de denúncia são importantes para a mudança do sistema, mas francamente, a meu ver, a exploração da miséria humana apenas pelo potencial de impacto das imagens já foi suficientemente divulgada. Depois de um tempo, o choque causado tende à mesmerização e amortecimento da população, sem, no entanto, propor uma solução. A pauta era: vamos mostrar o que pode dar certo!

 

Além da qualidade do artesanato produzido na cooperativa, chamou-me a atenção o papel fundamental daquele trabalho para a qualidade de vida daquelas mulheres, tanto das detentas quanto das funcionárias públicas envolvidas na gestão do presídio. Lá elas encontram uma oportunidade de convivência e de se reconhecerem como pessoas, não como antagonistas no sistema. A notícia de que havia um fotógrafo no presídio por aqueles dias se espalhou e, para minha surpresa, mais do que trabalhadoras e detentas, elas começaram a se mostrar como mulheres. Mulheres como outras quaisquer. Com suas belezas e vaidades. Pouco a pouco, as razões que levaram cada uma delas àquele momento foram ficando menos importantes. Todas se tornavam modelos em frente à câmera. Pouco a pouco iam se materializando aos meus olhos, pois elas ganhavam um rosto, um nome e suas histórias. É como se se fossem deixando de ser números e notícias distantes num jornal e fossem se tornando mais reais. E com essa proximidade a empatia fica também mais possível. Mais possível também acreditar na recuperação e reintegração daquelas mulheres na sociedade. Fica mais fácil entender que elas podem ser definidas por suas atitudes de agora, e não pelo crime que uma vez cometeram.

 

Dos dias que passei entre elas, vi a transformação daquelas detentas em mães, filhas, esposas, avós e mulheres. Vi a solidariedade de umas com as outras e também um pouco das suas angústias e tristezas. Vi pessoas restituídas de sua razão para viver e se tornando o melhor que puderam alcançar. Mulheres com motivos para tentar mais uma vez encontrar o seu lugar como pessoas de bem com um lugar na sociedade. E quem são essas mulheres? Em resposta a essa pergunta surgiu a motivação para esta foto documental e também o título a esta matéria: As Mulheres do Sistema.

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